A propósito do alegado Dia do Juiz Moçambicano
Do My Love da fofoca jurídica de hoje, pretendo falar de assuntos domésticos, ou seja, estomacais. Tenho acompanhado que existe um Dia do Juiz Moçambicano. E até já recebi muitas felicitações, via plataformas digitais, que comandam o mundo de hoje, mas não respondi a nenhuma delas. Aqui e agora aproveitarei responder a esses que me felicitaram e vão perceber, a razão do meu silêncio. O silêncio também é resposta. De indiferença ou de desacordo. De todo o modo, agradeço-lhes os votos, a propósito da dignificação do juiz e não pela data. E do texto chegarão à conclusão da minha indiferença. Para uma data como a de celebração do juiz, acho que deveria haver um amplo consenso dos juízes, da respectiva associação, dos órgãos de gestão do aparelho judicial, e das próprias direcções do Tribunal Supremo e do Tribunal Administrativo (porque não acho que deva haver uma data para juízes dos tribunais judiciais e outra para juízes dos tribunais de jurisdição administrativa). Mas, não acredito que esse amplo consenso tenha acontecido, até porque, mesmo estando, como, efectivamente estou, fora do activo, mesmo assim, a haver, dele estaria ao corrente. E isto porque sou membro da Associação Moçambicana de Juízes, com as quotas em dia.
Mas, deixando-nos de rodriguinhos, vamos directo ao assunto. Quando o movimento de comemoração do alegado Dia do Juiz Moçambicano começou, ainda fiz uma pausa prolongada, para ver se os mais velhos, ou seja, as gerações precedentes de juízes reagiriam. Mas, em vão. Acho que é altura de chamar atenção aos mais novos sobre a história, ou seja, aos jovens juízes, já que eu sou jovem de há muito tempo (parafraseando Dom Dinis Sengulane). Como juiz, devia me sentir orgulhoso por ter uma data celebrativa. Mas, por uma questão de princípios, os mesmos que guiam os outros colegas juízes, e, sobretudo, os de justiça e de igualdade de tratamento ao que é igual, os quais devem nortear qualquer juiz, prefiro estugar um pé atrás.
Aqui chegados, se perguntar não ofende: qual é a lógica da escolha da data de 8 de Maio para a celebração do Dia do Juiz Moçambicano?
Na verdade, que me lembre, se trata da data em que foi barbaramente assassinado o Dr. Juiz Dinis Silica, afecto na Secção de Instrução Criminal do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo. Não tenho nada contra o saudoso Dr. Juiz Dinis Silica. Tive o privilégio de o conhecer, enquanto formando, na Jurisdição Civil no Centro de Formação Jurídica e Judiciária, integrando eu, na altura, a equipa de formadores, sob regência duma conceituada civilista, uma Veneranda Conselheira, que foi Directora do Centro e tinha sido antes Juíza Presidente do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo, actualmente, em comissão de serviço noutras lides, por sinal, minha grande amiga. Deixo para acharem sozinhos o nome, pois, aqui no my love da fofoca jurídica, às vezes, é assim mesmo. E, continuando, por aqui fica claro que poderia preferir esta data, se fosse o caso, nomeadamente, se fosse para fugir ao princípio primo in tempora, primo in ius (primeiro no tempo, primeiro no direito), mas, a justiça não pode sucumbir contra a lógica que lhe subjaz.
Entretanto, antes do fatídico assassinato do Dr. Juiz Dinis Silica, tinham acontecido outros dois assassinatos de juízes, com fortes suspeitas de os mesmos terem ocorrido, em razão do seu ofício. O primeiro, foi o bárbaro assassinato do Dr. Alberto Santos Nkutumula, Juiz Presidente do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo, à data da ocorrência, no dia 22.05.1992, quando regressava de algures, em Boane, a casa, na Cidade de Maputo. E, como dá para ver, faço questão de colocar no ar, este artigo na data celebrativa do saudoso Dr. Juiz Alberto Nkutumula. E a morte do Dr. Juiz Alberto Nkutumula teve timbre satânico, porque se tratou de um massacre, que tirou a vida a ele e parte da família (esposa e cunhado). Esta data nunca foi celebrada, oficiosamente, que eu saiba. Mas, é uma data por demais significativa. O Dr. Juiz Alberto Santos Mkutumula, quando perde a vida, estava em efectividade de funções, como Juiz Presidente do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo, e tinha à sua responsabilidade, processos de alta exigência.
A 18 de Fevereiro de 1994, deu-se, igualmente, o bárbaro assassinato, à queima-roupa, da Dra. Juíza Emília Simango, que estava afecta na 2ª Secção do Tribunal Judicial do Distrito Urbano nº 1, hoje Distrito Municipal Nka Mpfumo, nesta Cidade de Maputo. Foi morta quando regressava à sua residência. Não tenho conhecimento de alguma celebração, oficiosa, à volta desta data. A saudosa Dra. Juíza Emília Simango perdeu a vida em efectividade de funções.
Aqui chegados e por uma questão de justiça, porque perguntar não ofende, mantenho a minha pergunta de partida, quanto ao critério de escolha da data para Dia do Juiz Moçambicano?
A abordagem que faço não deve ser confundida com o gostar de um e menos de outros. Não se deve pensar que estou a pretender dizer que a vida de um é mais importante que a de qualquer outro, nem que o assassinato de um é mais relevante que o de outros. Nem gostaria que a minha abordagem fosse confundida com falta de respeito para com a memória de um ou de outro, pois, para todas elas sufragamos que estejam na Santa Guarda do Senhor.
A minha preocupação é um hino à justiça e à igualdade de tratamento, mas também é uma exigência de um amplo consenso em matéria sensível. Não basta sermos juízes, nem falarmos da justiça, nem mesmo trabalhar em edifícios da justiça para sermos justos, é preciso que a justiça esteja em nós mesmos, ou seja, é preciso que pratiquemos a justiça, de modo a não sermos como aqueles que se defendem dizendo: façam o que eu digo e não façam o que eu faço.
E a data não pode ser segredo de um grupo, ainda que significativo e qualitativo, de magistrados. Todos nós podemos assinalar com cerimónias específicas, nos locais onde pereceram, os companheiros Alberto Nkutumula, Emília Simango e Dinis Silica. Mas, a meu ver, o Dia do Juiz Moçambicano poderia ser 22 de Maio que marca a data do primeiro evento relevante, ao estilo de a César o que é de César (Mateus 22:21). E, essa data, além de visita ao local do seu assassinato, deveria ser assinalada com a visita à Praça dos Heróis Moçambicanos, gesto que deveria ser repetido nas capitais provinciais, e não seriamos pioneiros, pois, assim o fazem outras organizações profissionais, sindicais e ou sociais. A alternativa seria valorizar a data de registo da primeira associação dos juízes, nomeadamente, dos tribunais judiciais, já que existe outra associação dos juízes de jurisdição administrativa e seria caricato haver duas datas de juízes.
Há que, de forma franca e aberta. conciliar posições com todas as partes envolvidas. Não podemos fugir a este debate, escondendo a história aos jovens. Eu estou fazendo a minha parte. O debate está aberto. Estou aberto ao contraditório, pois, seria pretensioso da minha parte arvorar-me com o monopólio da razão.
Maputo, 22 de Maio de 2024.
Augusto Raúl Paulino