A Pandemia do Coronavírus e os Novos Estigmas

O nosso mundo desabou. Desabou para nunca mais voltar a ser, nos próximos anos, o que, até aqui era. Depois que o Homem dominou no passado epidemias tais como: peste bubónica, febre-amarela, varíola, lepra, sarampo, meningite, gripe H1N1, Influenza, SARS, dengue, malária, e mais recentemente com aparente controlo de ébola, HIV, eis que nos aparece, fora das previsões, o coronavírus.

Sim, fora das previsões, porque apanhou o mundo em contrapé, mesmo para o primeiro mundo. E tudo foi desenhado em cima do joelho. Daí se pode compreender que muitas coisas podem não ter, não estar nem poderem correr bem do ponto de vista de resposta dos Estados. Mas se o mundo foi apanhado em contrapé, nós, em Moçambique, vemos agravar as dificuldades resultantes da pandemia, da instabilidade e das intempéries.

Na verdade, trata-se de uma pandemia que veio para desgraçar o mundo. Mas a maior de todas as desgraças recairá em África, onde os sistemas de saúde são por demais débeis, a prática do convívio é inevitável, as habitações periurbanas estão coladas e vive-se em regime de internato entre vizinhos, vulgo componde.

O Presidente da República, Filipe Jacinto Nyusi, nesta matéria, em especial, orientou e monitorou muito bem todo o processo. Cinco estrelas. Agiu a contento quer exercendo as suas prerrogativas constitucionais e legais, quer tomando a dianteira nos apelos à prevenção. Apareceu em 20 de Março a tomar publicamente medidas preventivas. E criou a Comissão Técnico-Científica. Apareceu em finais de Março a comunicar novas medidas e a anunciar a decretação do estado de emergência. E apareceu a fazer o balanço intercalar da primeira quinzena de Maio. Isto é revelador do esforço louvável do Presidente.

O Ministério da Saúde, simbolizado pelo novel Ministro, Prof. Doutor Armindo Tiago, estava já fazendo o seu máximo. Aliás, é preciso reconhecer que muito fez a actual equipa do Ministério da Saúde. Se tivéssemos hábitos europeus, eventualmente, teríamos saído à janela para aplaudir o trabalho dos heróis da Saúde. Espero que tal ainda se faça num dos próximos dias, como forma de reconhecer o desempenho dos nossos médicos, paramédicos e todo o pessoas técnico administrativo da Saúde, por tudo quanto faz para manter Moçambique respirando, até onde não der mais, até onde as costuras forem a rebentar.

Foi patente para todos os cidadãos atentos os esforços dos quadros da Saúde, desde a Directora Nacional de Saúde Pública, Dra. Rosa Marlene, ao Director-Geral do Instituto Nacional de Saúde, Dr. Ilesh Jani e ao seu adjunto Dr. Eduardo Samo Gudo, para a contenção da epidemia a níveis sustentáveis, de modo a evitar o colapso do Sistema Nacional de Saúde. E, diga-se de verdade, estes jovens conseguiram. Demonstraram uma pujança que lhes merece louros. Há alguns erros? Não importa agora relevá-los. Quem não os cometeria? Aliás, quem dentre vós não tiver pecado, atire a primeira pedra (Jo. 8, 1-11)? Quando terminar a pandemia, não se sabe quando, merecem distinção. Merecem distinção, sim, eles e outros colegas seus que não têm a sorte de aparecer nas câmaras de televisão ou nos microfones da Rádio Moçambique. Há muito pessoal médico e paramédico dedicado, que se esforça para cumprir com o seu dever, de forma exemplar. Acho, de certeza, que o General Salésio Nalyambipano, Presidente da Comissão Nacional dos Títulos Honoríficos e Condecorações e sua equipa estarão atentos para incentivar os proponentes. Muitos, como eu, lho haveriam de agradecer. Mas, o General e a sua equipa saberão melhor: nada de cunhas, nada de tráfico de influências. Como todos sabemos, de acordo com a lei, são os sectores que fazem as propostas. Incumbirá ao sector, se assim o entender, apresentar as respectivas propostas.

Mas, perante este esforço todo, dos nossos devotados médicos, parece ter caído por terra. Sim. Todo esse esforço poderá ter caído por terra. Estes jovens médicos, amparados pela velha guarda, tinham controlado muito bem, e bem mesmo, as linhas da Cidade de Maputo e de Anfugi. Tudo indicava que estaríamos livres de qualquer agravamento. Eis que os nossos irmãos sul-africanos tiraram, de pé para a mão, das suas celas e das suas ruas, muitos dos nossos concidadãos que por lá andavam, para, de roldão, os devolverem à Pátria Amada. Em um só dia, e para começar, entraram logo oito autocarros. E mais uns tantos despejados na fronteira da Ponta D´Ouro. Depois, foram mais de quinhentos e mais de duzentos. Sem nos esquecermos dos que entraram por vias fortuitas. Nem todos eles foram rastreados, pelo que cada um destes regressados foi directo à sua casa. Cada um recebido pela família. Até mesmo, impondo-se na família, à força, para não respeitar a quarentena. Isto descomandou e descompensou o serviço dos nossos heróis. Mas, um pouco mais adiante, por outras semanas, fomos recebendo mais regressados da África do Sul, mais outros e mais outros.

Na verdade, o regresso dos nossos compatriotas, tendo como base as boas relações entre os nossos Estados, RSA e República de Moçambique, podia ter sido melhor programado, de modo a permitir que as autoridades de Saúde moçambicanas tivessem tempo de organizar as diversas situações de gestão de quarentena domiciliária ou institucional.

O grupo que pareceu melhor controlado é o regressado de Portugal. E, no desembarque no aeroporto de Maputo, não haveria como não passar por uma triagem mínima, ainda que não bastante. Aí, o processo foi muito melhor conduzido e eficaz que a situação criada pelos nossos vizinhos.

Mas, em qualquer dos casos, importa dizer que os nossos concidadãos são bem-vindos, apenas lamentamos a forma como nas presentes circunstâncias, eles foram devolvidos. Com essa forma de devolução, em debandada, embora sejam bem-vindos os nossos concidadãos, a forma como ela ocorreu, faz-nos ter saudades e lembrar sempre da razoabilidade de Nelson Mandela. Aliás, sem demérito de ninguém, procurar encontrar igual a ele, seria como procurar uma agulha no palheiro (como dizem os portugueses)!

A pandemia mostra, igualmente, que perante este cenário, há que afinar estratégias. Digo, estratégias e não acções nem actividades. Pois, sem estratégia, tudo cai em saco roto. Algo poderia ter sido melhorado ou evitado com o aperfeiçoamento da estratégia. Mas, convenhamos, estamos a falar de uma doença da qual o mundo está aprender como com ela lidar. Não era e não teria sido possível prever nada. Mas algo poderia ter sido feito, para o remediar? Talvez sim, talvez não. Que fique claro, talvez ninguém fizesse diferente. Talvez outros fizessem pior. Mas, como disse, os nossos médicos fizeram o melhor. O mesmo se diga da Comissão Técnico-Científica. Mas, analisado a posteriori, tudo parece ter sido fácil e confortável. Mas, pronto, vamos dizer algo. Dizer só por dizer! Sem dizer mal!

Tratando-se de uma doença nova, sobre a qual tivemos alguns dias de graça, a ver a forma de agir de outros países, nós poderíamos ter estado muito mais preparados, nomeadamente, no caso das máscaras. Hoje, com a comunicação social a fluir, havíamos visto que em Hong Kong, Coreia do Sul e República Checa, as máscaras contribuem, em parte, para a menor propagação do vírus. Devíamos ter orientado o uso massivo de máscaras em locais públicos fechados e – porque não?! – na rua. Poderia ter sido pelo receio de esgotar o material. Então, se era para não esgotar o stock das máscaras para o pessoal da Saúde nas farmácias, outro esquema podia ter sido melhor gizado, como a requisição administrativa das máscaras cirúrgicas de todas as farmácias, para, depois, se orientar os cidadãos a fabricarem máscaras caseiras, como acontece agora.

Relativamente crítica foi a situação dos túneis de desinfecção. Todos nós vimos, a olhos vistos, o crescimento, qual surto de cogumelos, dos túneis de desinfecção, a partir do primeiro que foi instalado em Chimoio. Os nossos empresários nacionais engajaram-se no patrocínio da aquisição e construção destes túneis. Ficamos um mês e picos à espera de decidir que não são recomendáveis. Mas, sendo isso suficiente para o Conselho Científico se ter pronunciado, a OMS parece ter assistido, igualmente, sem nada dizer de imediato. Mas, mais uma vez, todos temos razão. Isto é assunto novo. Cada dia sai uma nova recomendação. Ninguém tem culpa. Só que foi gasto dinheiro que teria sido útil para combater a fome, essa um outro inimigo que teima em manter-se vivo.

Nas escolas, suscitam-se problemas prementes. Enquanto o Presidente da República orienta para se ficar em casa, as escolas primárias e secundárias recomendam para os pais e encarregados de educação irem às escolas buscar fichas, levantar e devolver exercícios e testes, o que cria longas filas de velhos (em idade de risco), porque alguns encarregados são os avós das crianças, adultos, e, em alguns casos, os próprios alunos, quando não tenham ninguém para tal empresa. Escusado é falar das áreas rurais, nas quais nem material para produzir fichas existe. Ou seja, parece que há uma parte do social que não tem noção da gravidade de uma pandemia. O que é importante, neste momento? É salvar vidas ou andar atrás das fichas? Aquele que tiver de sucumbir com a pandemia, não precisa de ficha para nada, no inferno. Isto repete-se, com nuances, no ensino superior, pois quem está neste nível tem outra atitude, mas carece de melhorias, para que não sejam obrigados estudantes a deslocar-se de um lado para outro, à procura de internet. Moçambique não é Maputo. Depois de Maputo, há muitos Moçambiques.

Ainda sobre as orientações do Presidente da República, que expressamente referiu a necessidade de órgãos como Assembleia da República deverem continuar a funcionar, depois de uma tentativa de funcionar no Centro de Conferências Joaquim Chissano, voltou à sua sede na Av. 24 de Julho. E fez muito bem. A Assembleia deve funcionar. Mesmo para ratificar os decretos presidenciais do estado de emergência. E para aprovar medidas de mitigação social, como a baixa do IVA. Mas, as medidas de prevenção devem ser consolidadas, pois a AR movimenta 250 deputados, mais motoristas, membros da PRM. Movimenta ainda convidados, entre membros do Governo e altas individualidades do Estado. Com os seus motoristas, ajudantes de campo, protocolo, etc. E, nas últimas sessões, pareceu muito elevada a lista de convidados, pelas imagens que nos foram dadas a ver das galerias, o que pode ser melhorado, para o cumprimento integral das instruções do mais alto magistrado da nação. Pareceu-me, na verdade, que as galerias tivessem várias vezes mais pessoas do que as permitidas para a última despedida de entes queridos. É verdade, não estamos todos preparados. No meio disto, ninguém tem culpa, pois, temos que nos adaptar à situação em cada momento.

Mas, gostaria de falar, agora, do estigma. Parece que o HIV nos semeou uma psicose de estigma, que se mostra difícil de vencer, já que tanto se enraizou. Na verdade, o HIV apesar de ter várias formas de transmissão, de longe a transmissão por via sexual é a dominante. E como o africano gosta muito do sexo, essa via é totalmente penalizadora para este, em geral, e para o moçambicano, como africano, em particular. Então, foi sendo desenvolvida a construção de isolamento, na perspectiva de o contaminado ser pessoa de menos cuidado na busca de prazer sexual. Daí o estigma. Mas, com o andar do tempo, com o controlo com a medicação atenuante nos países desenvolvidos, e, também em países menos desenvolvidos, como Moçambique, o estigma foi se esbatendo.

Hoje, o estigma nasce e cresce para os infectados pela pandemia. Surgem vozes que culpabilizam os infectados. A agravar o medo que temos uns dos outros. É verdade que temos de abraçar o isolamento físico. Mas muitos destes infectados não procuraram a doença. Não a contraíram por culpa sua. Muitos e alguns contraíram-na de forma inocente. Tal é o caso das crianças. Outros podem ter contraído por circunstâncias fortuitas. Assim, não podemos culpar a quem nem o sintoma tem, de estar a transmitir a doença a uns e a outros. Sim, as pessoas podem ter contraído a infecção de forma fortuita. Há exemplos pelo mudo fora. O Primeiro-Ministro britânico não contraiu o vírus por não lavar as mãos. Nem os responsáveis de saúde britânicos contraíram a doença por não lavarem as mãos. Nem o Primeiro-Ministro Russo contraiu a doença por não lavar as mãos. Portugal perdeu uma reputada médica que contraiu a doença numa clínica de hemodiálise. A África do Sul perdeu uma reputada médica que contraiu a doença em circunstâncias pouco claras. Estou falar de figuras públicas referidas na comunicação social. O Brasil perdeu muitos médicos e profissionais de Saúde, não é porque não lavavam as mãos. Temos que combater o estigma, para permitir que todos os que tenham sintomas se comuniquem com as autoridades de Saúde, para estas lhes indicarem as instruções pertinentes. Há que evitar ir ao Hospital, de imediato, antes de ligar para as linhas recomendadas para não infectar o pessoal médico e paramédico ou outros doentes na fila de espera. Estou a falar das cidades. Julgo que as linhas são gratuitas. No campo não há como. A Saúde tem outras instruções, que não as conheço.

Mas, se nas cidades é possível lavar as mãos, porque há água e sabão, em muitas zonas do interior, nem água para beber existe, quanto mais para se ter água para lavar as mãos. Há que encontrar formas de educar os cidadãos, de modo a equilibrar-se o campo e a cidade, para que a igualdade entre os cidadãos não seja letra morta.

A juntar-se ao medo de estarmos com outras pessoas para não contrairmos o vírus, não pode ter maior peso o jogo de atirar culpa aos infectados, a menos que tenhamos provas de que estiveram permanentemente nas barracas, em busca da infecção.

A propósito do estigma, a Mãe que fugiu com o bebé da Beira para Tete, fê-lo por causa do estigma. Com estigma, não haverá colaboração. Há que deixar de diabolizar os infectados e afectados e tratarmos da doença com responsabilidade. Esta é uma doença para medidas individuais e medidas colectivas. Nós todos queremos viver. Nós todos gostaríamos de não contrair este vírus. Queremos ser sobreviventes desta pandemia. Mas, cumprindo as orientações da Saúde e facilitando a prevenção.

Finalmente, o nosso Governo deve encontrar estratégias para minimizar a pandemia. Esta pandemia veio para ficar. Pelo menos, por este ano todo. E o próximo. Então, não vamos ficar em casa todo esse tempo, sem trabalhar. Temos que encontrar formas de nos adaptarmos à situação, pois a vida não pode parar totalmente. As escolas têm que reabrir e funcionar, os restaurantes, as empresas, os transportes, tudo isso deve voltar a funcionar, com medidas adequadas de isolamento físico. Os hospitais têm que atender doentes normais. E têm que atender doentes infectados por esta maldita pandemia.

Mas, há que ter sempre presente que o Estado deve prever um plano B, nomeadamente, planificar o pico da pandemia, requisitar serviços dos hospitais e clínicas privados, preparar hospitais de campanha, tais como ginásios e pavilhões desportivos e internatos escolares, para atender a qualquer eventualidade de evolução da pandemia. Obviamente, queremos o óptimo, mas nada melhor que estarmos preparados para o pior e este não acontecer.

Vamos lutar todos, sem estigmatizar ninguém, pois este tipo de doença, diferentemente do HIV, depende de conduta colectiva! Mesmo que a conduta individual valha, mas, a colectiva é, sobretudo, importante.

Mas, para qualquer que seja a luta, temos de estar vivos e bem de saúde. Por isso, nada melhor que cumprirmos as instruções constantes dos Decretos Presidenciais, do Conselho de Ministros e do Ministério da Saúde, pois o nosso maior valor é a vida!

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