Se calhar falar de mim

(A propósito do meu 60º aniversário natalício)

No presente artigo, falo de mim a propósito do meu 60º aniversário natalício. Como todos os textos ou livros celebrativos de aniversário, seria paradoxal que o mesmo fosse um arrazoado de auto-flagelação. O texto visa, essencialmente, servir de inspiração aos mais novos, para que nunca desistam das lutas quotidianas, tal como eu não desisti ao longo de toda a vida, mesmo perante adversidades. Estão excluídas abordagens que sejam matéria reservada do Estado.

A estrutura do texto permite que cada um vá à busca do subtema específico, nomeadamente:

1) considerações preliminares

2) nascimento e árvore genealógica;

3) infância: entre a bonança e dificuldades;

4) na Educação e Cultura em Chókwè;

5) na Educação e Cultura na Cidade de Xai-Xai;

6) Estudos em Nwachicoluane e na UEM;

7) Na IGF e nos CFM-EP:

8) no Tribunal Aduaneiro de Maputo;

9) no Tribunal Judicial da Província de Maputo;

10) no Tribunal Judicial da Cidade de Maputo;

11) na Procuradoria-Geral da República;

12) notas finais;

13) considerações finais.

1. Considerações preliminares

Completo hoje, 9 de Janeiro de 2021, os meus sessenta anos de vida. Não fosse a pandemia, haveria festa. Mas, a sua ausência me ajuda a poupar-me do stress que uma festa representa. Desde logo, dos recursos financeiros, aos dilemas de uma lista de convidados (com o risco de esquecimento de uns e outros), à lisura do discurso de ocasião.

Obviamente, que estou a colocar-me numa situação de censura pública voluntária, ao escrever sobre mim. Muitos vão considerar isso uma falta de humildade ou de recato e contenção ou de moderação, ao fazer um artigo para falar de mim mesmo. Muitos haverá que estarão ávidos de encontrar oportunidade, motivo e espaço para me criticar. Felizmente, sou do tempo da crítica e autocrítica, em que alguém criticava outro alguém a ferro e fogo, e à saída da reunião parecia que estava tudo tranquilo, mas, nem sempre tanto assim! Por isso e sobre isso, nesta idade, nenhum filme é novo para mim. De todo o modo, e para já, lhes dou toda a razão do mundo. Mas, também não se pode pedir a um homem que não celebre os seus sessenta anos, da maneira mais criativa possível, em tempo de pandemia, esta que determina, sobretudo, a falta de festa. Acredito que o que escrevo pode ser uma fonte de inspiração para os mais novos: trabalhar e viver do suor próprio, mesmo passando por dificuldades, pois a vida, para ser uma aventura agradável não passa, apenas, por facilidades.

Embora a celebração dos sessenta anos, hoje em dia, não signifique absolutamente nada de especial, porque há gente que vive até os 100 anos ou mais, sei que tal seria um insulto à inteligência e aos que menos tempo duraram na terra, no gozo das férias que a morte nos dá. Acabo de acompanhar de um noticiário que a UNICEF declarou que crianças que nascerão no ano de 2021, terão uma média de vida de 113 anos. Como eu nasci em 1961, estou fora dessa equação.

Dos meus amigos, os que me conhecem sabem muito bem que, por estas alturas, estou agradecendo esse pouco e muito período de férias mundanas, celebrando como o ensaísta Padre Zezinho na sua famosa canção sobre a oração da família: abençoe, Senhor, as famílias, amém, abençoe, Senhor, a minha também!

Escolhi falar de mim, porque, infelizmente, não concluí um manual que estou a elaborar, com o qual gostaria de me presentear, e, sobretudo, presentear a família judiciária, mais propriamente a dos tribunais. Confesso que estou animado com o projecto. Atrasou, devido às minhas obrigações académicas, mas sairá logo que possível. Era para sair agora em 9 de Janeiro de 2021. Mas, não sai. E como não sai nesta data, já perdi a pressa. Trata-se de um livro com o título: Fases do processo civil declarativo – manual de rotinas: entre a teoria e a prática. Está claro que, ao indicar o título do livro, estou a fazer uma espécie de reserva do nome, não vá outro, face à minha demora, se embrenhar no mesmo exercício.

Na verdade, é com muita tristeza que constato que, apesar de tantos esforços feitos na formação dos magistrados, ultimamente, nos distritos para onde foi feita deslocar maior fatia da competência na matéria, os processos cíveis não andam. Um dos argumentos tem sido o de alegadamente se priorizar os processos criminais. É verdade. Mas, mais do que isso, por uma questão de honestidade intelectual, não omitamos também a ignorância da tramitação. Isso faz com que os processos fiquem anos a fio, a aguardar pelo despacho liminar, outros tantos a aguardar a marcação de audiência preliminar, muitas vezes, feito isso, o processo não avança mais até que o juiz seja transferido, promovido ou as partes se desinteressem ou morram. Isso, para mim, não é justiça. É uma justiça adiada, porque nem é deferida sequer. E não tenho receio de o dizer agora, porque sempre o disse, mesmo quando estava no activo. Chego até a pensar, a contragosto, que, se os processos criminais andam, tal será porque meia papinha é feita pelo Ministério Público, na sequência da também feita pela Polícia de Investigação Criminal, transformada em serviço, esta muitas vezes  feita pelos oficiais de permanência nas esquadras da PRM, muitos dos quais licenciados pela ACIPOL (Academia das Ciências Policiais). Mas, não é disto que desejo falar hoje. Só queria sublinhar que estou a preparar um manual de rotinas das fases de processo civil.

Dito isto, resta, apenas, falar de mim. Em data de aniversário, seria contra-senso que eu dissesse que quero falar mal de mim. Vou falar para, aparentemente, me vangloriar pelos feitos que a vida e os acasos da vida me deram. Obviamente, não falarei das oportunidades que esses acasos me cortaram para uma vida livre.

Devia ter escrito 60 páginas, para simbolizarem um ano por cada, mas acho que não teria estofo para tanto, pelo momento em que começo. Prometo escrever 70 páginas, quando for para celebrar os setenta anos, condição que depende da cunha junto a S. Pedro, para que interceda nesse sentido ao mais alto nível, para que a minha carta de chamada se vá protelando até melhor oportunidade. E, como naquele mundo as cunhas não servem, resta esperar sentado.

Há muita coisa de tipo pessoal e da relação com as instituições para as quais servi que ainda não pode ser dito. Por uma questão de responsabilidade de Estado, acho que a maioria das lacunas nesse sentido tem a ver com o facto de algumas matérias não poderem ser partilhadas ainda, pelo que só o tempo fará com que sejam liberadas aos poucos, enquanto houver vida e saúde e a oportunidade o permitir.

Importa dizer que sou um dos felizardos, pois, recebi muitas cerimónias de homenagem em vida, dentro e fora do país. Cada acto que um amigo, cada voto de simpatia que recebo de um cidadão anónimo quando com ele cruzo, faz de mim uma pessoa feliz.

Para uma arrumação telegráfica, passo a apresentar os assuntos do seguinte modo:

2. Nascimento e árvore genealógica

Sou o primeiro de oito irmãos, do casamento dos meus pais, no seio dos quais eu sou um dos seis irmãos germanos (filhos do mesmo pai e da mesma mãe), ao lado de dois outros, nossos irmãos consanguíneos (filhos do mesmo pai e de mães diferentes). Em cada uma das linhas houve um irmão falecido. Portanto, sobramos seis vivos. Do tronco da minha família paterna me resta o meu pai (Paulino José Chaissa); a minha tia (Amélia Chaissa Cumbe). Do lado materno restam: Rosta Suzana Condela Dussi, Filomena Condela Dussi Cambula e Afosnso Condela Dussi, todos meus tios, filhos dos meus avós maternos. Assim, para fechar a árvore, de facto, sou filho de Paulino José Chaissa e de Benígna dos Anjos Condela Dussi; neto paterno de Txipandiane Kamo Kamo Chaissa e de Malutsuane Tualufo Hele e neto materno de Condela Matiquite Dussi e de Vampaquide Norote Zuande. A toda esta constelação, que me deu origem, vai o meu reconhecimento.

Nasci em Nharreluga, a caminho da Maternidade de Chongola, numa zona com muitos bambus. Meu pai era professor catequista na Escola Primária de Cuaguana. E, minha mãe, acompanhada pela minha avó materna, Vampaquide Norote Zuande, a mãe dela, sogra do meu pai, portanto, foi à maternidade, a pé. Como nasci a caminho e a regra era a de chegar dias antes, minha mãe, quando chegou à maternidade comigo pela mão, recebeu de imediato, ordem de punição, da enfermeira-parteira Rosa. A medida consistia em ela cultivar no terreno da maternidade. Ao longo do dia apareceria o meu pai, que se insurgiu contra a punição, que foi de pronto interrompida. É que, como professor, meu pai, como tantos outros professores catequistas, eram pessoas importantes e não podia uma pessoa também importante como a parteira estar a fazer tanta maldade a uma outra, o professor, por via da sua mulher. Na verdade, pôr uma mulher que acabava de dar vida a uma pessoa, a cultivar nada, era agravar a sua capacidade de reposição do organismo.

Assim, fui registado como tendo nascido em Nharreluga e no regulado do mesmo nome.

3. Infância: entre a bonança e dificuldades

Passei a minha infância entre Dongane (incluindo Cuaguana e Cambula), na Vila de Inharrime e em Maputo. Fui sempre um menino comum, tal como aos outros. Havia, como é óbvio, pequenas diferenças, porque era filho de um professor catequista.

O meu pai tinha sido soldado do exército colonial. Pertenceu ao Comando da Cavalaria, cuja sede é onde se acha o Estado-Maior-General, actualmente. Depois de desmobilizado, regressou à terra e se tornou professor catequista. Tendo sido soldado, optou por, nas actividades não lectivas, ensinar alguns rasgos da marcha. Um jovem vizinho, de nome Atanásio Alacanhe, que tinha sido aluno do meu pai, foi recrutado para tropa. Submetido aos treinos, ele destacava-se, mostrando que entendia muito bem de marcha unida, porque a havia treinado com o professor catequista, meu pai. O sargento instrutor, maravilhado de tal, perguntou e ele esclareceu que tinha colhido esse conhecimento na escola.

Eis que o sargento marcou uma viagem à Escola Primária de Cuaguana para ver o reportado e conhecer o professor. Como não havia um sistema de comunicações fluído naquela altura, quando chegou, era um Domingo, o meu pai estava de partida para a missa na Escola Primária de Cambula, que seria orientada pelo Padre José Almeida Martins de Freitas. Estava claro que o professor não podia faltar à missa do Padre Freitas, seu superior hierárquico. Dessa vez, foi um fiasco. Foi marcado para um certo Sábado, para o sargento visualizar os exercícios.

No Sábado combinado, chegou de manhã e regressou no final do dia. Passou as refeições num vedado rondável de paredes meias (até à altura da cintura), coberto de capim e caniço a meia altura. O mais importante foi a operação de exercícios dos alunos. Mas, sobrou tempo. Então, foi-se à caça de galinhas do mato e perdizes. Ao que se seguiu o almoço. A minha mãe esmerou-se grelhando e assando carne de cabrito e grelhando lagosta fresca. Não faltou a famosa galinha à cafreal, feita à moda local. Houve fruta local, banana e ananás, para além de bolinhos de sura. Dois ou três soldados que vinham com o sargento instrutor tinham trazido o seu próprio farnel e desistiram dele e aderiram aos manjares locais. Algumas alunas tinham sido seleccionadas para ajudar o serviço de cozinha, nomeadamente, para lavar a louça e pôr a mesa.

Dá para ver, tanto exercício para um sargento! Foi um dia muito agitado. No final do dia, o sargento e os seus acompanhantes levaram ofertas locais, com destaque para mariscos do dia. O sargento quando regressou a Lourenço Marques mandou preparar uma encomenda de roupas de crianças que tinham sido dos seus filhos para nós. Eu e a minha irmã Ângela recebemos essas roupas. Desde sapatilhas, meias, calças, camisas, saias, blusas, etc. Vestimos por algum tempo. Quem trouxe as roupas foi um jovem desmobilizado, de nome Jacinto. Ele veio entregar toda a mercadoria, tal como a tinha recebido do sargento.

Os momentos mais alegres eram os da apanha de castanha de caju, em casa dos meus avós quer paternos quer maternos, em tempo de férias. Éramos muitas crianças a apanhar caju. O caju devia ser recolhido todo. Era usado para fazer sumo: doce, agridoce e já fermentado. Era gratuito e não se vendia. Aliás, nunca se colocou a hipótese da sua venda. O que sobrasse, em termos de bagaço de caju, servia para fazer aguardente. A castanha servia para consumo e para venda. Acontece, porém, que o peso do caju foi sempre maior e nós, como crianças, na apanha levávamos a castanha e escondíamos o caju devido ao seu peso excessivo. Mas, andava sempre um tio a fiscalizar e desenterrava o caju para metermos nas bacias. Aquilo dava uma “trabalheira do carraças”, e, no final do dia, dormíamos quase como múmias, de tanto arrebentados que, desse trabalho, estávamos.

Esse foi um período áureo. Quando meu pai era professor catequista. Mas, viríamos a experimentar por demais a pobreza, já mais tarde. Meu pai foi assediado por um Senhor, de nome Daniel de Sousa Faísca, da Agricultura e Florestas. Era um branco famoso, de alcunha Chicolocolo.[1] E meu pai foi trabalhar para a Agricultura num projecto específico de multiplicação de viveiros de diversas plantas, com destaque para as mudas de cajueiros e coqueiros que eram distribuídos gratuitamente à população. Até aí tudo bem. Vivíamos nas instalações onde tinham estado antes os dirigentes do complexo da Fábrica de Mandioca de Dongane, com água canalizada de motobomba e energia de gerador. Mas, este projecto terminou e o meu pai não tinha como voltar a professor catequista, porque o lugar dele em Cuaguana tinha sido ocupado pelo professor Basílio Quimisse.

Foi então que decidiu ir trabalhar para as minas do rand, na RSA. Este foi o período mais crítico da vida da família, particularmente da minha, ao termos experimentado o sabor amargo da pobreza extrema, pois, começámos, como família, a passar por dificuldades nunca dantes conhecidas. Não era essencialmente comida que faltava, pois essa provinha da machamba. Mas, tudo o resto era crítico. Esta situação melhorava no período da venda de castanha de caju aos logistas (Abdul, Mussagy e Scandar) ou da semente de mafura para a Fábrica de Sabão, pois nesse período de vindima havia dinheiro para resolver muitas carências.[2] Ou, quando a minha mãe conseguisse vender o algodão, que era uma cultura obrigatória.

A minha situação viria a melhorar globalmente quando a minha mãe me consegue entregar ao Padre José Lima da Costa para estudar na Missão da Nossa Senhora da Conceição de Inharrime. Na verdade, em Inharrime havia dois internatos missionários. Um na Missão de Mocumbi e outro na Missão da Vila Sede de Inharrime – Nhatumbuine (Missão da Nossa Senhora da Conceição). Foi para este último que eu fui. De resto, já contei uma parte da forma da minha ida à Missão e do saudoso Padre José Lima da Costa como meu pai social. Ele apostou em mim. Mas, um pouco antes de terminar a minha 4ª classe na Missão, mais um incidente viria agravar a minha penúria. Meu pai foi preso pela PIDE na República da África do Sul e deportado de volta para Moçambique. Directamente para a cadeia Central de Maputo, vulgo, Ka Djamanguana. Desse episódio já falei em outro momento e para aí remeto.[3]

Sobre o saudoso Padre José Lima da Costa, embora tenha falado dele, voltaremos, em algum momento com mais três histórias. Vamos dizendo tudo aos poucos.

4. Na Educação e Cultura em Chókwè

Comecei a trabalhar em 12 de Fevereiro de 1979, na Escola Primária do 5º Bairro de Hókwè, Localidade de Chilembene, Distrito de Chókwè. Na altura eu tinha 18 anos. Fui indicado Director de Escola, de um total de cinco professores nela colocados. Ou seja, no primeiro dia de trabalho eu ia já com a guia de Director, sem nunca antes ter trabalhado. A pessoa a quem eu ia substituir na função estava a reformar. Os meus adjuntos foram: Manuel Guidione Nuvunga e Boavida Mohambe Bila (já falecido), como responsáveis pedagógico e administrativo, respectivamente. A Escola cumpria, e bem, com as suas obrigações, nomeadamente, a pedagógica, a de ensino e a de educação. No meu tempo, nós íamos à procura dos alunos, pois faltavam muito no tempo da guarda do arroz contra a acção predadora dos pássaros, no tempo das colheitas, e, não menos vezes, para a pastagem. Os pais tinham muita dificuldade de entender qual o melhor entre o valor da escola e a riqueza material imediata, tal como, gado bovino e o produto da machamba. Foi necessário que, nas reuniões, água mole pedra dura tanto batesse até que furasse. Recordo-me das reuniões difíceis com os pais e encarregados de educação para os obrigar a pôr os filhos na escola. Mais ainda, os pais achavam que eu, o Director da Escola, tinha dificuldades em os compreender, pois eu pertencia ou vinha de uma tribo sem cultura de criação de gado ou de cultivo de arroz, o que até nem era verdade, salvaguardada, embora, a diferença de ambiente entre aquele donde eu provinha e aquele que ali vigorava. Eu lutava com as armas de que era capaz. Com o apoio dos meus adjuntos. Assim, batalhamos até sermos bem compreendidos. Até andávamos pelas casas à procura dos alunos. Hoje, é o contrário: são os alunos que andam à procura da escola, e até os pais pelas casas dos professores, para os assediarem a subverter as actuais regras de matrícula nas escolas!

A Escola produziu, nesse ano de 1979, muito tomate e deu para melhorar as condições das instalações, equipamento, material escolar, para lanche diário e para fazer uma festa, à qual, além dos alunos, todos os pais e encarregados de educação estiveram presentes. Aí já eu era o herói, muito querido por todos. Mas, foi sol de pouca dura, porque no final do ano fui transferido para a Escola Primária de Mapapa, onde iria ser Director desta. Houve um movimento de populares para impedir a minha transferência, porque eu era um bom jovem, eles estavam a gostar de mim, porque lhes tinha feito ver o valor da educação, etc, mas não vingou. Em Mapapa fui substituir o Professor Alberto Dolane da Silva Chuquela, que tinha sido transferido, a seu pedido, para Maputo. Além de Director da Escola Primária de Mapapa, fui indicado Responsável Pedagógico da Zona de Influência Pedagógica de Conhane. O meu Director da Zona de Influência Pedagógica era o professor Manuel José Nhassengo.

Duas notas importantes em Hókwè. Eu tinha muita simpatia dos colegas da escola. Mas, tinha também simpatia dos colegas da Zona de Influência Pedagógica de Chilembene, a que  pertencia a Escola Primária do 5º Bairro de Hókwè. E éramos muitos professores da minha geração nas escolas daquela Aldeia Comunal, à qual se adicionou o 7º Bairro, uma Aldeia do antigo Colonato do Limpopo, onde era Director o meu pai social, o tal de que já vos falei, o José Samuel Mabote.

Na Escola Primaria de Chilembene era Director desta e Director da Zona de Influência Pedagógica (ZIP) o saudoso Professor Francisco Rafael Guilovissa. Era um homem de verbo fácil, alvorense (ou seja, formado no Alvor), muito inteligente, alto e de voz possante. Confesso que é dos colegas mais inteligentes que eu conheci e  ao qual eu muito respeitava, pois o tinha como alguém sabichão. Francisco Rafael Guilovissa, se lhe tivesse sido dada oportunidade, teria sido um fenómeno académico jamais visto. Era mesmo um super inteligente. Ele gostava muito de mim, porque achava que eu tinha boas ideias. Nas reuniões insinuava que eu falasse ou me concedia a palavra, mesmo que eu não a tivesse pedido. Ele ficou amuado com a minha transferência para Mapapa. Embora compreendesse que ela era para mim uma promoção, ele entendia que, assim, estava a perder um elemento forte para a ZIP (Zona de Influência Pedagógica) dele – a de Chilembene. Eu não me esforcei para não sair. E naquele tempo, uma nega seria desobediência. Na epopeia daquele tempo, a um jovem de dezoito anos só interessava fazer andar a Educação, onde quer que fosse.

Ainda em Hókwè, um episódio relevante. A aldeia ia receber visita da Ministra da Educação da RDA (República Democrática Alemã), Margot Honecker, esposa do Presidente daquele país da Europa socialista de então. E, como era óbvio, seria acompanhada pela Ministra de Educação e Cultura de Moçambique, Graça Machel, igualmente, esposa do Presidente da República, Samora Moisés Machel. O Secretário da Aldeia, entre as dezenas de docentes, chamou o professor José Samuel Mabote e eu e incumbiu-nos a tarefa de preparar uma mensagem de boas vindas em nome da população. De facto, escrevemos a mensagem com o carinho e a responsabilidade que nos tinha sido colocada nos ombros. Quando lha fomos entregar, o Secretário indigitou-me para ser eu a apresentar. Tentei resistir, invocando que, dos três, eu era o mais novo. Acrescentei ainda que não tinha roupa formal condizente para o acto, mas tudo isso de nada valeu. E, importa agora esclarecer, quanto a roupa para tal, não a tinha, mesmo. Tinha boa roupa, mas não era formal, do tipo fato ou balalaica ou goiabeira, o que estava na moda dos dirigentes na altura. Eu era apenas um professor, que por mero acaso era Director da Escola Primária do 5º Bairro do Hókwè. Eu só comecei a usar roupa formal, fato ou balalaica, quando me tornei Director Distrital. O meu Director Provincial, António Jorge Correia Simões deu-me guia para ir à ENCATEX comprar roupa formal. Aquilo era uma espécie de bónus de início de funções, pois os preços também eram muito simpáticos.

Mas, retomando a questão da mensagem da população de Hóhwè para a Ministra de Educação da RDA; como planificado, no dia seguinte, eu devia apresentar a mensagem em nome da população, num comício que seria presidido pela Ministra da Educação e Cultura, minha chefe, o topo da hierarquia do meu sector. Vesti do melhor que tinha. Umas calças cinzentas, camisa branca e um casaquinho de jeans. Fui ler a mensagem. Fi-lo com voz pausada, ao estilo dos padres, como tinha aprendido na Missão. Enquanto a lia, a Ministra traduzia para a visitante. Quando a terminei, fui entregar a mensagem à visitante e pude reparar que a Ministra Graça Machel ficou muito emocionada ou comovida. Deu-me um aperto de mão efusivo. No final do comício, quando ia a entrar para o carro, disse-me que a estrutura local lhe havia referido que eu era professor e que tinha muito futuro pela frente. Eu tinha ficado exposto. Recordo que eu tinha, apenas dezoito anos. Os meus colegas (outros professores) e os chefes locais estavam também por ali, o Director da ZIP, o Director Distrital de Educação e Cultura, a Directora Provincial de Educação e Cultura. Acho que terá sido esse fenómeno que impulsionou a minha transferência para Mapapa. Uma vez que era necessário um responsável pedagógico da ZIP de Conhane e tendo a própria Ministra elogiado alguém como eu, nada mais haveria dos dirigentes, senão a opção por mim.

Tal como em Hókwè, em Mapapa fui muito feliz. Tinha uma boa equipa de adjuntos. A minha adjunta pedagógica foi a saudosa Margarida Micas Aurélio Mugabe e o meu adjunto administrativo foi Atanásio Francisco Come. Em Mapapa fui Director de uma escola com sete professores. Fiquei, igualmente, um ano, nomeadamente, o ano de 1980, pois em 1981, passei para a Direcção Distrital de Educação e Cultura do Chókwè.

Aqui em Mapapa, a minha casa, como todas as aldeias do Colonato do Limpopo, era geminada com a do Enfermeiro Domingos, a esposa Dona Mónica, uma senhora muito dinâmica, que andava sempre nas lides partidárias e muito respeitada no meio local e por todos nós. Uma vez e outra passávamos juntos as refeições, nomeadamente, aos sábados ou domingos. Mas, muitas vezes, ou quase sempre, eu ia ao condomínio dos professores aos finais de semana passar as refeições. Fazíamos contribuições, como é óbvio. Comia-se tanta salada e carne de vaca à farta.

Tentei introduzir a experiência que tinha tido em Hókwè em todas as actividades e, com o apoio dos meus adjuntos levámos a missão a bom porto. Produzimos muito tomate e iniciamos um projecto de piscicultura. Ainda havia produtores do tempo do colonato e quase que invariavelmente me convidavam para conversar, comprar carne, ovos e verduras. Um comerciante, de nome Cuamba, também gostava de me convidar para conversar. Por insistência sua, nos tornámos compadres. Eu explico. Uma das filhas (Cremilda) quando quis casar, escolheu-me para padrinho na sua relação com Queixo. Mas, a minha amizade primária foi com o Cuamba e depois conheci os filhos Zefanias e Marília, que se tornaram meus amigos. Eles vinham de férias, porque já estudavam no ensino secundário. Estava também um senhor de nome Jordão, que tinha os filhos em Portugal, todos crescidos e ele vivia em Mapapa, com a esposa. Sentia gosto em me convidar para conversar, em parte para combater o tédio, e, também porque eu lhes lembrava a idade dos filhos. O casal ensinou-me a fazer um pão com nacos de carne por dentro, de um sabor sem igual. Mas, dá um trabalho para o carraças

Note-se que todos estes não tinham filhos a estudar na escola. Só estavam entusiasmados por ver um jovem de tenra idade como Director da Escola. Quer em Hókwè, quer em Mapapa, eu gostava de jogar futebol de onze, aos fins-de-semana, em representação da equipa da aldeia. Viria a desistir de jogar futebol de onze até hoje, quando contraí uma lesão no meu pulso esquerdo que deixou sequelas por falta de socorro imediato, e, ainda assim, agravado, porque voltei a jogar na minha aldeia para fazer uma pequena demonstração e lixei o pulso de vez. Hoje, com os meus amigos do filia, às vezes alinho, na falta de jogadores, mas, sou um atleta a menos, porque nunca vou à busca da bola, e, perante um adversário próximo, prefiro entregar a bola, ou atirá-la para fora, mesmo sem que assim se exija, do que contrair mais uma lesão.

Em Mapapa, a escola beneficiou de um projecto americano de distribuição de leite em pó, óleo e quejandos, para fazer loua ou mesmo leite fervido e sopas em pó, para a redução de abstenção e desistência escolar ou mesmo para que os alunos não faltassem à escola. Como dava muito trabalho, a escola com o dinheiro de produção contratou senhoras, a prazo, para se ocuparem disso. Todo o aluno ao intervalo maior tinha direito a um lanche condizente.

No final do ano, fui transferido para a Direcção Distrital de Educação e Cultura para me ocupar da chefia do Núcleo de Planificação e Estatística. O meu Director Distrital era o Professor Armando Secretário Ubisse. No ano seguinte, ao meu Director Distrital foi concedida uma bolsa de estudos de um ano para a extinta RDA. A Directora Provincial deu luz verde para ele escolher o substituto, ou seja, alguém que se ocupasse da Direcção, interinamente. Ubisse falou com o meu colega, o saudoso José Luís Laisse, que era responsável Distrital de Educação Física e Desportos. Ele não aceitou, porque embora fosse parte da instituição, tinha menos preparação para a globalidade da componente pedagógica, pois estava ligado a uma área específica de acção. A responsável pela Direcção Pedagógica, Maria de Lurdes Bungane, estava de licença de parto. Da área sobrava eu, pois depois de mim vinham o responsável da cultura (José Guerra Bungueia) e o da alfabetização e educação de adultos, que era interino. Eu não podia recusar, pois a instituição ficaria sem comando. Mereci a aprovação da Directora Provincial, Filomena Ofiço Munguambe, e do Administrador do Distrito, Aleixo Miguel Patime. Assim, substituí por um período de um ano, até que veio o timoneiro, Dinis Feniasse Massingue. Posteriormente, foi indicada a minha transferência para a Cidade de Xai-Xai.

5. Na Direcção de Educação e Cultura da Cidade de Xai-Xai

Mesmo reconhecendo que fui bem sucedido em todos os lados onde trabalhei, terá sido, sem sombra para dúvidas, na Direcção de Educação e Cultura da Cidade de Xai-Xai, onde fui muito feliz e onde me senti realizado, onde eu era amparado, querido e glorificado por todos.

Quando assumo a Direcção de Educação e Cultura da Cidade de Xai-Xai (DEC), eu tinha 23 anos de idade, muito jovem. Mas, tinha assumido antes a Direcção Distrital de Educação e Cultura do Chókwè, em regime de longa substituição (não remunerada, ainda assim) aos meus 20 anos.

Fui substituir Vasco Zandamela (aposentado), que era um dirigente carismático. Muito querido pelo Partido, dirigente da AMASP na Província, entre outras funções.

Obtive do meu Director Provincial, António Jorge Correia Simões, autorização para montar a minha equipa de apoio. Assim, confirmei o meu colega de curso e colega como Chefe do Núcleo de Planificação, função que eu também havia exercido, o Ismael Bila. Confirmei Luís Duarte Tomo Langa, como Chefe do Departamento Pedagógico. Confirmei o saudoso António Carlos Massingue como Chefe do Departamento de Cultura. Rosa Figueiredo, nas Finanças, e mais tarde Domingos Zitha; e para Chefe do Desporto, Adolfo Muianga. Luís Duarte Tomo Langa viria a pedir licença sem vencimento para se ocupar de outras actividades. Nessa altura o substitui pelo Jossias João  Langa.

Recordo-me com carinho da Rassul Bibi, que era servente e residia nas dependências da Direcção, e nós ficávamos muito confortados com isso, porque a DEC não tinha lugar de guarda no seu quadro de pessoal. Então, esta senhora fazia de tudo. Era servente, guarda e escriturária. O Chefe de Secretaria era chefe de si mesmo.

O meu colectivo era constituído pelo Chefe de Departamento Pedagógico; Chefe do Departamento de Cultura; Chefe do Departamento de Desporto; Chefe do Departamento de Planificação e Estatística; Chefe do Departamento de Administração e Finanças; e Chefe de Secretaria. Havia um quadro muito trabalhador, o António Muiambo, que estava afecto ao Departamento Pedagógico, que era convidado permanente do colectivo que reunia uma vez por semana (todas as segundas feiras das 08,00 à 09.00 h).

Era um colectivo extremamente homogéneo. Nos encontros fazíamos a planificação centralizada, discutíamos os procedimentos e assegurávamos a implementação. Era a relevância do centralismo democrático.

Eu ia de férias e vinha encontrar a Direcção muito melhor do que se eu tivesse estado. Até me apetecia estar sempre fora de Xai-Xai para encontrar a casa sempre melhor. Mas, isso não era possível, isto é, estar de férias ad eternum, estando vivo. Aliás, o trabalho é que valoriza o Homem. Ai de quem pensa em dormir, por pura preguiça! Naturalmente, o que pretendo dizer é que os meus colegas se esmeravam para mostrar ao Chefe deles que eram obedientes e cumpridores. Não tínhamos transportes, como os há hoje, não tínhamos meios de comunicação (vulgo, telemóvel), como os há hoje, mas éramos muito eficazes. Estávamos hierarquizados. Na ausência do Director, era o Chefe do Departamento Pedagógico que assumia as rédeas do poder, e, na impossibilidade deste, o seguinte na ordem hierárquica, Planificação, Cultura e Desporto. Nunca havia um vazio. Mas, esta substituição era interna. Ao nível do Governo da Cidade, quem substituía o Director de Educação e Cultura, politicamente, apenas de forma simbólica, era o Director da Saúde. O mesmo acontecia com o Director da Saúde que era substituído pelo Director de Educação e Cultura.

Lembro-me que levávamos a cabo várias actividades. Vou indicar sumariamente algumas. Operação Carteira que consistiu em produção de mais de três mil carteiras de madeira e mais de mil de metal. Na verdade, usámos os recursos da Caixa Escolar para, com a autorização da Direcção Provincial de Agricultura, no tempo em que o Director Provincial era Roberto Lumbela, um grupo de carpinteiro, pagos à tarefa, abater árvores (chafuta) para, no recinto da DEC fabricar carteiras escolares. Isso tirou muitos alunos do chão. Enquanto isso, a Escola Industrial 7 de Setembro e a Escola de Artes e Ofícios de Inhamissa foram envolvidas na produção e reparação de carteiras de metal, aqui com uso da mão-de-obra local (professores e estudantes).

Instalámos um sistema de abastecimento exclusivo dos professores. Ou seja, nas grandes cidades havia muitas filas para a compra de comida e haveres. Os professores, perante o cenário da fome, deixavam de dar aulas para irem às filas, sob pena de ficarem sem nada para comer. Falámos com a Direcção Provincial de Comércio, com o Presidente do Conselho Executivo, Milagre de Jesus Mazuze, com o Director do Comércio da Cidade, Rafael Gabriel Malhaieie, e a decisão foi tomada, a bem dos professores. Elaborámos as listas, para cada professor comprar comida na loja ou cooperativa da sua zona habitacional na hora mais adequada, ou seja, fora do horário das aulas. Foi uma experiência bem sucedida e sem paralelo em qualquer outro ponto do país.

Criámos na DEC um grupo cultural denominado Os Rebeldes de Outubro, em homenagem ao falecido Presidente Samora Machel. O grupo era treinado pelos professores Admiro Leão e Elisa Simbine. Fez apresentações perante o Presidente Joaquim Chissano e perante vários outros dirigentes, que gostaram, ou pelo menos, pareceu que tivessem gostado.

No domínio do desporto, movimentámos um campeonato recreativo ao nível da cidade, envolvendo bairros e empresas, a ponto de algumas empresas deixarem o recreativo para competições federadas.

Mas, foi no domínio de ensino que a nossa missão mais se centrou. Multiplicámos acções de formação e capacitação dos professores e os resultados vieram. Tudo foi feito para combater a preguiça de investigação. Com muita inteligência. Como se sabe, as cidades concentram um maior número de professoras. Elas são maioritariamente esposas de directores províncias ou quadros e técnicos a esses níveis e tudo o que é feito numa direcção como a da cidade chega ao conhecimento dos chefes grande no mesmo dia. Mas, mesmo nessas condições conseguimos dinamizar a actividade de ensino e aprendizagem. Sacudiu-se a preguiça. E tive sempre o apoio pessoal e incondicional dos meus Directores Provinciais. Falo de António Jorge Correia Simões e de Jossias Elias Miambo. Os que corriam para fazer queixas infundadas eram escorraçados e sempre reafirmado a meu favor o voto de confiança. Todas as propostas que eu apresentava eram aprovadas sem reparo. E a Cidade de Xai-Xai tinha muitas escolas primárias organizadas em quatro ZIP (Zonas de Influência Pedagógica). E tinha escolas secundárias, nomeadamente, a Escola Secundária do Xai-Xai, cuja directora era Rossana Bakar; A Escola Industral a Comercial 7 de Setembro (com internato), cujo Director era Menezes Roberto, a Escola Secundária de Inhamissa (com internato), o Director era Lourenço Matsumane; O Centro de Formação de Professores Primários de Inhamissa (com internato), cujo Director era Simão Mahanjane. Do ponto de vista de ensino, as escolas secundárias eram directamente dependentes da Direcção Provincial de Educação e Cultura e do Ministério. Mas, do ponto de vista de organização e coordenação local dependiam da DEC, de tal modo que participavam nos conselhos coordenadores da cidade, como instituições convidadas.

A relação com o meu colectivo era tão firme que se estendeu aos convívios sociais. Por trimestre, fazíamos almoços colectivos em casa de um dos membros. Cada um se candidatava a receber os convivas. O Director incluído.

Exonerado e reconduzido – feito único de que tenho memória

Como era habitual, certo dia, pelas 17,30 horas, sai do meu gabinete e fui ao do meu amigo, Patrício Moisés Marrime, que era o Chefe da Repartição de Finanças de Xai-Xai. Ia sempre na boleia dele para casa. Encontrei o meu amigo a fechar as entradas da Recebedoria. Sentado no gabinete dele decidi, com autorização dele, verificar os Boletins da República que acabavam de chegar. Recebíamos os BR com muito atraso. As Finanças recebiam com prioridade os BR. Eis que, ao ler as partes que me interessavam, nomeadamente, do Ministério da Educação e Cultura, vejo o meu nome estampado. Estava assim: Gabinete do Ministro, Despachos. De 14 de Dezembro de 1987: Augusto Raúl Paulino, técnico pedagógico D de 2ª – Cessa as funções de Director Distrital de Educação e Cultura de Xai-Xai, ao abrigo do disposto nos artigos 83 e 228 do Estatuto Geral dos Funcionários do Estado, a partir da data do início de funções nos órgãos do partido Frelimo. (Anotado pelo Tribunal Administrativo em 1 de Março).

Fiquei atónito. Fui tentado a pensar que não era eu, mas, o nome estava por demais certo, por um lado, e, por outro, a função que se devia deixar era a que eu desempenhava. Percebi que tinha sido uma brincadeira de muito mau gosto. Eu já tinha começado a falar com os meus chefes que queria continuar com os meus estudos. E não fazia sentido que, havendo sido introduzido ensino pré-universitário em Nwachicoluane  – Chókwè, houvesse um único director distrital sem esse nível. E, esse despacho iria pôr em crise essa minha perspectiva, pois passaria a vida sem aumentar, ainda a tempo, os meus estudos, e o meu futuro estaria em causa. Percebi que alguém me tinha montado uma cilada. Mas, eu tinha que sair dela. Eu disse para comigo mesmo ou saio desta ou não me chamo Augusto Raúl Paulino!

Regressei ao gabinete. Fui carregar uma velha máquina de escrever no meu gabinete. Dei conta ao Patrício, que até então não se tinha apercebido, e rumamos à casa. Durante toda a noite, escrevi uma exposição dirigida à Ministra da Educação e Cultura, mamã Graça Machel. Levei em mão ao meu Director Provincial de Educação e Cultura, o saudoso Jossias Elias Miambo. Pedi que pusesse o parecer em minha presença, pois queria levar comigo naquele momento a exposição. Depois de ler, colocou o seu visto. Estava claro que eu não sairia dali sem isso. Fui ao gabinete fazer despachos correntes, a fazer tempo para caçar o Governador no Partido. Naquele tempo, o Governador era o primeiro secretário provincial do partido, de manhã estava no governo, à tarde no partido. O segundo secretário era o Comandante Militar da Província. Quando eram 14 horas estava eu sentado à entrada da sede provincial do Partido à espera do Governador (primeiro secretário), que para a minha sorte estava na capital provincial, pois poderia ter tido o azar de ele estar em serviço nos distritos. Foram passando os secretários provinciais e outros quadros a perguntar o que eu desejava, mas eu estava assanhado o suficiente para gastar as minhas munições com quem poderia inviabilizar a minha audiência com o governador – primeiro secretário.

Quando vi o pirilampo a chegar, percebi que tinha chegado o meu momento de afirmação, pois era tudo ou nada. Tratava-se de uma verdadeira aventura, pois poderia ser mal entendido e conotado como quem se opusesse ao partido de vanguarda. Ainda não se chamava glorioso como se diz hoje. Era partido de Vanguarda. Podia ter sido considerado contra-revolucionário. Mas, isso não contava para mim naquele momento. Quando o governador – primeiro secretário desceu do carro viu-me e disse, ó Paulino, por aqui? Sem pestanejar eu respondi: sim, excelência! Gostaria de vos falar e agora mesmo! Ele disse: vamos! Percebi que tinha ganho alguns pontos. Mas, a batalha era longa. O governador era uma pessoa muito social e equilibrada. Estou a falar de Francisco João Pateguana. Entrámos juntos no gabinete dele e perguntou para mim: o que se passa, meu filho? Sem dizer palavra alguma, entreguei o texto da exposição com três páginas. Eu tinha feito das melhores redacções de que havia memória. Afinal, a destinatária final era a Ministra da Educação e Cultura. Pateguana leu com gosto e no final, perguntou-me: afinal, estes camaradas não lhe consultaram? Eu respondi: não excelência! Ele escreveu no verso da última folha, o parecer e chamou a secretária para efeitos de carimbo. E disse para mim: se queres estudar, e ainda és jovem, não te podemos cortar as pernas. Assim, eu tinha dois pareceres favoráveis, um do director provincial, meu chefe directo e outro, do primeiro secretário provincial, que era quem dirigia a máquina do partido, para a qual eu estava a ser empurrado.

Dali fui à Direcção Provincial de Educação e Cultura, onde estava em serviço, a então Inspectora-Geral do Ministério, Filomena Ofiço Munguambe, que tinha sido minha chefe. À minha chegada, depois das saudações habituais, ela diz para mim: amanhã estamos de volta. Vens reclamar o facto de não termos visitado a tua Direcção? Eu respondi: isso também. Mas, venho por um outro assunto. Gostaria de falar a sós com a Senhora Inspectora-Geral. Ela disse: com certeza, Paulino. E expliquei o sucedido, pedindo que ela levasse a minha exposição em mão para a Ministra, a mamã Graça Machel. Ela ficou muito sensibilizada e assumiu a minha luta, porque estava claro que eu queria estudar e não tinha interesse de integrar órgãos partidários. E eu sabia que ela era pessoa certa: a Inspectora-Geral faz despachos com a Ministra, e, sobretudo, quando regressada de uma visita inspectiva a uma província. Tratava-se de uma sexta-feira pela tarde. Ela no mínimo teria encontro com a Ministra, a mamã Graça Machel, a partir de segunda-feira.

Pelas 16.30 horas da segunda-feira seguinte, estava a chamar o telefone directo do director, o meu de ocasião, portanto.[4] Era o número 2224. Não esperava tanta celeridade. Levantei o auscultador e disse: sim, por favor! Do outro lado, veio a voz inconfundível! Como está, Paulino! Tratava-se de ela própria: Graça Machel! Respondi: muito bem, excelência! E ela disse: recebi o seu documento. Já está despachado. Continue no cargo por algum tempo. Depois vamos tratar da concessão de bolsa de estudos. Esteja tranquilo, nada será a seu desfavor. É legitimo valorizar quem pretenda estudar. Eu fui respondendo sim, sim, excelência! Muito obrigado, muito obrigado!

No dia seguinte, terça-feira contei aos colegas o que tinha acontecido, telefonema da nossa hierarquia máxima. Os BR demoravam muito. Recebi o BR com o despacho de recondução, mais tarde, com o seguinte conteúdo: Ministério da Educação, Gabinete do Ministro, despachos, de 29 de Junho: Augusto Raúl Paulino, técnico pedagógico D de 2ª, exercendo, em comissão de serviço, o cargo de Director da Educação e Cultura da Cidade de Xai-Xai (Gaza) – anulado o despacho de cessação de funções, em virtude de não se ter efectivado a transferência para os órgãos do partido. (Anotado pelo Tribunal Administrativo em 19 de Setembro).

Insisti no meu pedido para continuar os estudos. Falei com o meu Director Provincial reiterando que pretendia continuar com os meus estudos. Eu tinha apenas 9ª classe. Precisava de estudar. Tudo foi tratado, pacificamente, e como a Ministra estava ao corrente, consegui a concessão de bolsa para fazer o nível médio em Nwachicoluane. Mesmo assim, demorou a minha substituição. Ia estudar toda a semana e na sexta-feira regressava para orientar os colegas. Isso levou quase um semestre. Até à indicação de André Duarte Tomo Langa.

6. Estudos em Nwachicoluane e UEM

Obtida da minha hierarquia autorização para a continuação dos estudos, foi simultaneamente concedida bolsa para estudar a tempo inteiro na Escola Pré-Universitária de Nwachicoluane. Não tenho muito tempo para contar as peripécias de Nwachicoluane, por ora, o que farei proximamente.

Mas, importa notar que ao mesmo tempo lutavam em outros distritos e mesmo na Cidade de Xai-Xai outros quadros para a continuação dos respectivos estudos. Chegado a Nwachicoluane, havia um outro grupo de estudantes, para além de um colega que ia comigo do Xai-Xai, Manuel José Macie.

Por esforço do meu Director Provincial (o saudoso Jossias Elias Miambo), do Director da Escola (Máster Samuel Lázaro) e do Chefe do Internato (Manuela José Nhassengo) que tinha sido meu Director de ZIP em Conhane, foi achada uma residência para bolseiros da Educação para que não ficássemos no internato com meninos.

A Escola teve que ser deslocada no último trimestre da 11ª classe (não havia 12ª), para a Cidade de Chókwè, nomeadamente, Escola Agrária do Chókwè, devido às ameaças constantes dos ataques da Renamo. Na verdade, a Escola tinha mais de cem estudantes, para além de professores e trabalhadores. Assim, se caísse nas malhas da Renamo era um grande dilema para o Estado e uma vantagem sem igual para a Renamo.

Viríamos a terminar o nível com sucesso, diga-se, com excelente aproveitamento, eu e o meu colega Manuel José Macia, bolseiros que vínhamos da Cidade de Xai-Xai. Em 1991, a UEM introduziu o regulamento de acesso ao ensino superior com base em concurso. Neste primeiro ano, os estudantes com notas altas, média superior a 16, não estavam sujeitos concurso. Eu tinha uma média que dava para mim e para oferecer. Optei por Direito e Letras. Entrei pela primeira opção. O meu colega Manuel José Macia teve uma bolsa da Fundação Ford e foi estudar para o Brasil.

De Nwachicoluane voltarei a falar, pois trata-se de um livro inteiro que importa escrever e reescrever, não bastando estas linhas. Mas, registe-se, por ora, que Nwachicoluane foi uma boa aposta do Governo de então. Dali saíram muitos quadros que ocupam sectores importantes e estratégicos do nosso país.

Em relação Faculdade de Direito, centro-me, fundamentalmente, no estudo em grupo. Com efeito, durante a minha frequência na UEM, pertencia a vários grupos de estudo. Espero que os meus colegas não se aborreçam nem me processem por falar deles em minhas reflexões sobre o passado. Sobretudo, sem lhes ter pedido autorização. O primeiro grupo era a dois eu e a Filomena José Elias. Era difícil, na altura arranjar sítio tranquilo para estudo. Estudávamos em casa dela. Na casa da Filó, como carinhosamente a trato, quem mandava preparar lanche ou preparava, pessoalmente, era a mãe, a saudosa Maria de Lourdes Grachane. Ela merece tributo por ter contribuído para a nossa formação. Outro sítio era a Escola Primária 16 de Junho, onde havia um professor que se simpatizou connosco, que nos cedia espaço; ou no Instituto de Línguas, onde eu tinha o meu “irmão” Renato Matusse, Director Pedagógico de então. Eu integrava outro grupo de Adelino Manuel Muchanga e João António de Assunção Baptista Beirão, que estudava na casa do irmão do Beirão, ou dentro de casa, se fizesse muito calor para aproveitar o ar condicionado ou à sombra de uma frondosa árvore, à qual denominamos de árvore milagreira, pois era talismã para nós, estudando debaixo dela, obtínhamos boas notas nos testes. O irmão do Beirão assegurava-nos lanche à altura, se calhar era o lanche que nos dava energias para bom aproveitamento, pois a fome é sempre um obstáculo à inteligência. O irmão do Beirão merece reconhecimento, porque deu o que tinha e o que não tinha para que nos saíssemos bem. Sempre procurava saber se estávamos confortáveis. Admirava o nosso entusiasmo. Além deste, tinha um grupo integrado por Inácio Rodrigues, Filomena Elias, Luís Gabriel Muthisse e eu. Este grupo estudava em casa do Inácio Rodrigues. A esposa do Inácio, uma senhora muito simpática e gentil, cuidava de nós mandando preparar lanche. Merece um tributo, porque, efectivamente, contribuiu para a nossa formação, sobretudo, porque ficávamos até altas horas da noite. Este grupo, por duas ou três vezes estudou também em casa de Luís Gabriel Muthisse. De lanche também não podemos reclamar. Estava ao cuidado da falecida esposa do Luís, de quem se rende tributo por ter contribuído para a nossa formação. Estes são os principais grupos de estudo. Mas, houve muitos outros ocasionais. Acredito que acima de seis. Na verdade, quando entrámos para a Faculdade de Direito da UEM, em Agosto 1991, pouco nos conhecíamos. Alguns vinham da Escola Secundária Josina Machel e Francisco Mayanga (Maputo), outros vinham de Nwachicoluane (Gaza), outros ainda da Samora Machel (Sofala) e 1º de Maio (Nampula). Eram estas escolas que leccionavam o nível médio em Moçambique e mais nenhuma. Só quando as primeiras notas de Introdução ao Estudo do Direito (Professora Suzana Brasil de Brito) e de Ciência Política (Professor Vitalino Augusto Canas) começaram a sair é que surgiu a separação das águas. Em função à pauta, as solicitações de uns e outros para estudo em grupo eram maiores. Eu fazia esforço redobrado, porque era bolseiro a tempo parcial do Ministério de Educação e Cultura. Tinha que estudar e dar aulas, primeiro na Escola Secundária Estrela Vermelha, depois na Escola Secundária do Noroeste 1, onde eu tinha sido estudante. Efectivamente, tinha que arranjar sempre espaço certo para dormir. Na verdade, ter aulas de manhã, estudar em grupo pela tarde e dar aulas pela noite até 22,00 horas, não era para suportar, não fosse a vantagem da minha idade, por essas alturas e a vontade de vencer que era grande. Mas, como professor primário formado, sempre tive metodologia de estudo diferente da de um comum estudante. Acho ter contribuído com isso nos grupos, para o nosso sucesso colectivo. De espectacular, é que esta Turma de 1991 sempre foi muito homogénea e unida. Ainda hoje existe e reafirma-se no mercado jurídico com empenho e dedicação aceitáveis.

7. Na IGF e nos CFM – EP

Destas instituições falarei com minúcia noutros momentos, tratando-as aqui apenas como ligações para a magistratura. Por influência de João António de Assunção Baptista Beirão, meu amigo e colega do grupo de estudo, viria a requerer para passar à Inspecção-Geral de Finanças, no consulado do Inspector-Geral, o saudoso Jorge Marcelino, coadjuvado por Carlos Jessen Júnior. Havia outros inspectores, nomeadamente, os saudosos Ângelo Vasques Lisboa Mucavele e Jaime Levi, este último, pai da que viria a ser minha amiga Benvinda Levi.

Devido à influência do nosso amigo Beirão, entrámos para IGF a seguir a ele, mais três. Adelino Manuel Muchanga, Marcelo Muhache e eu. Havia falta de quadros, cada chefe procurava no mercado os quadros que achasse que poderiam servir. Havia mais emprego do que candidatos para ocupar. Na IGF o trabalho jurídico era residual. Embora fôssemos razoavelmente pagos dentro da função pública, faltava a aplicação constante dos conhecimentos. E como houvesse muito aliciamento, todos fomos saindo aos poucos. O primeiro a sair para a magistratura judicial foi o nosso mobilizador-mor o Beirão. Depois lhe seguimos aos poucos, menos o Marcelo que foi para EDM e a curva do Muchanga mais demorada ainda.

E, mais ainda, devido à influência do também meu amigo, a quem chamo de tio Inácio, o Inácio Rodrigues Júnior, do outro grupo de estudo de que falei, da IGF fui parar na empresa Portos e Caminhos de Ferro de Moçambique, e fui afecto à Direcção Executiva Sul, na altura o Director era Aníbal Manave. Passei a trabalhar sob direcção do Chefe do Srviço de Recursos Humanos, Carlos Davide Cassimo  Sotomane. Reitero que Davide do nome dele escreve-se com “e”. Eu então fiquei chefe do departamento das relações laborais. Havia outros colegas chefes de departamentos ligados a este serviço, nomeadamente, António Mungoi, de administração e recursos; o saudoso Fernando Mutupa Muianga, refeitórios e rogística; o saudoso Benhane Massuque, do sector social e previdência. Formamos uma equipa muito homogénea e actuante a bem da Direcção Executiva Sul. Fui muito querido ali e até hoje me sinto e sou também tratado como património ferro-portuário. 

Aconteceu, porém, que o saudoso Cipriano Nhane, Secretário-Geral do Tribunal Supremo de então, e o meu amigo João Beirão, não me largavam. Queriam me na magistratura judicial. Acabei cedendo. Frequentei um curso intensivo com os meus colegas, entre outros, Achirafo Abubacar Abdula, Pascoal Francisco Jussa, José Maria de Sousa, Hermenegildo Jone e tomamos posse a 1 de Março de 1997 para juízes, inicialmente como contratados e interinos, e viríamos a ser confirmados dois anos depois como efectivo e do quadro.

Na verdade, a minha passagem para a magistratura judicial, ocorreu na base de requisição do Estado, no caso, o Conselho Superior da Magistratura Judicial, aos Portos e Caminhos de Ferro de Moçambique – EP. Com tudo documentado. Em outros momentos voltaremos a esta matéria. Por ora, saltando etapas:

8. No Tribunal Aduaneiro de Maputo

O Director-Geral da Alfândegas, Barros Santos, que havia sido Juiz Conselheiro do Tribunal Administrativo, solicitou ao Presidente do Tribunal Supremo, por ser de lei de então, a indicação de um juiz de Direito para dirigir o Tribunal Aduaneiro de Maputo. O Presidente do Tribunal Supremo era Mário Fumo Bartolomeu Mangaze. Ele perante vários cenários, ouviu o Conselho Superior da Magistratura Judicial e coube-me o privilégio e a missão de dirigir aquele tribunal.

Ali já existiam juízes. Alguns dos quais terão frequentado comigo cadeiras em atraso na Faculdade de Direito. Bem dito, são eles que tinham cadeiras em atraso. E estava também um guru das Alfândegas, o saudoso Jorge Morais, que assumia interinamente a coordenação das actividades.

Na verdade, a minha presença, ainda que por imperativo legal, criou algum desconforto nos colegas que já lá estavam, pois para eles, um juiz de um tribunal comum, como é o caso do judicial, ia tirar- lhes o mérito, ia dirigí-los, como se eles não fossem capazes.

Não tinham a dimensão da minha astúcia, nem de que eu já tinha passado por outras depenagens. Eu, que, com menos de 21 anos tinha sido Director Distrital Substituto, a dirigir gente mais velha que eu, e a isso tinha sobrevivido, não seria ali onde eu iria cair no ridículo.

No primeiro encontro, tratei de dizer aos colegas que nada alteraria do status quo. Tudo funcionaria como antes. Eu era apenas mais uma peça para ajudar e não para prejudicar o serviço. Disse-lhes que eu iria, uma vez por semana, para receber o relatório do trabalho, por via do saudoso colega Jorge Morais, o qual se simpatizou de pronto comigo. Disse-lhes que gostaria de ver a tabela dos julgamentos, que me dessem conta dos processos complexos em curso, que seria eu a dar destino às reclamações e queixas sobre corrupção.

Nos encontros subsequentes, já havia muita harmonia. E daí em diante, quer o Jorge Morais me telefonava a chamar, quer os juízes se tivessem um caso complexo me consultavam. Continuei a ir uma vez por semana, porque mantinha a minha função principal, como juiz efectivo da 4ª Secção do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo, que era a do Inácio Ombe, este que, por sua vez, a herdara de Joaquim Luís Madeira.

Daí até ao meu termo da comissão de serviço nesta função, todos os colegas gostavam de mim e pediam audiências para colocar questões técnicas, questões de articulação com as autoridades alfandegárias e aduaneiras, questões pessoais e tantos outros assuntos.

Por imperativo legal, pedi a cessação da comissão de serviço, quando passei a Juiz Presidente do Tribunal Judicial da Província de Maputo, com sede na Matola, para onde eu passei a residir.   

No jantar de despedida, ouvi dos melhores discursos elogiosos vindos de todos os sectores do Tribunal e das autoridades alfandegárias e aduaneiras, com vários presentes, entre quadros de famosos artistas locais. Tenho alguma quantidade de quadros recebidos ao longo da minha carreira. Os que não se deterioraram podem ser suficientes para uma exposição, ou para um leilão, ou alguém depois de mim vai colocá-los de alguma forma organizados lá para Dongane, minha santa terrinha.

Passei, porque as condições legais, entretanto, já permitiam que assim fosse, dizia, passei o martelo da presidência do Tribunal Aduaneiro de Maputo ao Jorge Morais, que, com a mestria que lhe era característica, deu continuidade ao serviço.

9. No Tribunal Judicial da Província de Maputo

Cheguei a este tribunal em Agosto de 2003, onde ia substituir Claudina Ernesto Macuácua Mutepua da direcção deste e da secção cível, que era a primeira, que se ocupava de cível, família e menores. A anterior timoneira havia sido transferida para dirigir o Tribunal de Menores da Cidade de Maputo. Com a vacatura do lugar de presidente, a direcção interina esteve a cargo do meu colega de Faculdade, Pascoal Francisco Jussa. Passavam já seis meses de ocupação interina, o que, obviamente, não criou problemas pela nossa relação pessoal, pois poderia ter sido dado a entender que seria confirmado na direcção efectiva. Como Distribuidor estava o Xavier Ndeve (substituído mais tarde por Estevão Casimiro Matusse). Do gabinete do Presidente faziam parte Carmem Nganhane, que cuidava dos recursos humanos; Adelaide Muchanga, que cuidava de administração e finanças; Ecelina Margarida Navele, que era a secretária particular do presidente. Um ano mais tarde, viria a fazer alguns ajustamentos de pessoal, face à criação e operacionalização de novas secções. Assim, das Finanças saiu a Adelaide Muchanga, que passou a escrivã da 1ª Secção Criminal, e em seu lugar indiquei Nelson Francisco Cumbe. A escrivã da 1ª Secção Cível, a Emília Augusto Filipe, passou para a 2ª Secção Cível; para além de indicações interinas de dois ajudantes muito dedicados ao trabalho na altura, nomeadamente, Sérgio Matavele e Rui Guilengue, para a direcção das secções cível (1ª) e criminal (2ª), respectivamente). Como o tempo viria a dar-me razão, estes dois jovens são hoje oficiais de justiça ao mais alto nível da categoria (secretários judiciais). Apercebi-me mais tarde, que a substituição da Chefe das Finanças, não tinha sido do seu agrado e custou-me muito caro, como foi público. Mas, nunca tive medo de tomar decisões sempre que as achasse correctas, a bem do Estado e dos serviços, mesmo que isso me afectasse como pessoa. Tirando esse desaguisado, também consegui formar uma boa equipa neste tribunal. Com os meus colegas juízes, apostámos em reuniões mensais de balanço de desempenho processual e troca de impressões técnicas sobre as matérias candentes na altura. Arrendámos imóveis para funcionamento das secções laborais, as quais, por falta de espaço, disputavam a única sala existente com as secções criminais. Para a racionalização da única sala, as audiências preliminares cíveis e de menores fazíamos nos gabinetes, o mesmo acontecendo com processos de instrução preparatória ou contraditória de réus não presos. Como aqui fossem poucos juízes, diferentemente do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo, recordo-me de todos eles.

Na minha visita pelos distritos, na qualidade juiz presidente, além de um funcionário, fazia-me acompanhar por um colega, para verificar se, em certos casos, poderia ser possível a deslocação da alçada para julgamentos, sempre que houvesse muitos declarantes ou testemunhas dessa ordem de proveniência.

Tínhamos uma equipa de luxo, dirigida pela Romana Luís de Camões, que era a chefe da Comissão dos Grandes Eventos, nomeadamente, organização de seminários temáticos, abertura do ano judicial e inauguração de edifícios para tribunais. Isso me ajudava a não monopolizar o trabalho e a receber relatórios sempre positivos, assumindo a função de mero coordenador. Nesse período, realizámos vários debates temáticos envolvendo juízes, procuradores, e outros tantos stekholders do sector.

Paralelamente, inaugurámos no meu consulado os edifícios dos Tribunais Judiciais dos Distritos de Moamba, Magude e Marracuene, construídos com recursos partilhados do Estado e da Delegação do Cofre dos Tribunais. Estas inaugurações contaram com a honrosa presença e direcção de Mário Fumo Bartolomeu Mangaze, Presidente do Tribunal Supremo.

A relação com a Procuradoria Provincial, na altura a Procuradora Provincial-Chefe era a Graciett Ludumila Xavier, com a PRM, na altura o Comandante era Adriano Mucuapera, bem assim, a PIC era excelente.

10. No Tribunal Judicial da Cidade de Maputo

Terá sido, igualmente, onde me senti feliz pela unidade com os meus colegas que faziam o grupo de trabalho. Fui juiz da Secção de Instrução Criminal numa altura em que estavam lá magistrados, entre outros: João António de Assunção Baptista Beirão (que presidia à Secção, mais tarde transferido para Beira). Depois permanecemos três, Rafael Sebastião, Achirafo Abdula e eu. Rafael Sebastião veio transferido da Zambézia para presidir à Secção. Na verdade, Rafael Sebastião tinha a missão de emprestar o seu nome, prestígio e a sua autoridade técnica à Secção de Instrução Criminal. Rafael Sebastião tinha sido transferido para aproveitar continuar os seus estudos na Faculdade de Direito. Ele dominava toda a legislação e todos os procedimentos. Tinha bebido do Juiz Conselheiro Luís Filie Sacramento, quando foi Juiz Presidente do Tribunal Judicial da Província da Zambézia. Apenas lhe faltava a parte formal de licenciatura em Direito, nomeadamente, o canudo. De resto, era licenciado pela prática.

Depois de alguns meses, passámos a acumular funções como juízes da Secção de Instrução Criminal e como juízes das secções de causa. Eu passei a acumular funções com a 8ª Secção Criminal e o meu colega e amigo Achirafo Abdula acumulou com a 10ª Secção Criminal. Assim, íamos às cadeias realizar o primeiro interrogatório de arguido preso para validar ou não as capturas e tratávamos de processos das secções de causa desde a avaliação dos mesmos, com o recebimento da acusação, a abertura e realização de instrução contraditória, despachos de pronúncia e realização de julgamentos.

Assim trabalhámos, até que fui transferido, por vontade de Joaquim Luís Madeira, Presidente do Tribunal, para que fosse à Secção dele, a 4ª, para servir de juiz adjunto. O Tribunal Judicial da Cidade de Maputo é o maior do nível dos tribunais provinciais. Na altura, movimentava cerca de cinquenta por cento do universo dos processos desse nível. Isso fazia com o que o juiz presidente se ocupasse muito das tarefas de gestão administrativa, na procura de recursos em tempos difíceis, sobrando pouco tempo para atender à demanda processual. A secção tinha aproximadamente quatro mil processos. Por isso, se justificava que o juiz presidente fosse coadjuvado por um colega para dar vazão aos processos e assim responder aos anseios dos cidadãos e a bem da justiça. Foi o que aconteceu durante alguns anos. Veio mais tarde Paula Machatine (mais tarde Honwana, de casamento) e passámos a dois juízes adjuntos. Joaquim Madeira viria a ser promovido a Juiz Conselheiro e, depois de algum tempo, recebemos Inácio Ombe, que, para além de presidir ao tribunal presidia também à 4ª Secção. Com ele continuamos a trabalhar, até que foi designado Inspector Judicial e a presidência do tribunal passou para a minha querida amiga, Maria Benvinda Delfina Levi. Nessa altura, passei a presidir à 4ª Secção, tendo sido transferido, com a jubilação de Ezequiel Nhantumbo, para a 10ª Secção. Depois foi afecto mais um colega na 10ª Secção de tal modo que eu passei quase que a ocupar-me, exclusivamente, de um processo relevante, por determinação do Conselho Superior da Magistratura Judicial. Gostaria de salientar que na 4ª Secção, o saudoso escrivão Simião Azarias Manhiça era uma pessoa muito dedicada ao trabalho. Ele vivia na zona da Ronil. Descia à pé por volta das 7.00 horas ao prédio Macau, onde chegava pontualmente às 7.30, hora de entrada. Se um bom juiz faz um bom escrivão, um bom escrivão faz um bom juiz. Por vacatura, devida ao seu falecimento, foi substituído por Rafael Chongo, também dedicado ao serviço. Tinham como ajudantes Orlando Chambule e Ludovina Manuel Comé.

Neste período, é justo referir que o tribunal tinha uma elite de escrivães, entre outros, Acácio Mondlane, Distribuidor (substituído sucessivamente pelo escrivão Ismael Abdul Carimo e pelo escrivão Carlos Mulhuquisse Matusse); escrivão Manuel Carlos Chambo; escrivão Rafael Macandane Matusse[5]; Escrivã Zulmira Florinda Chirindza (contadora); a saudosa Escrivã Elisa Manica (contadora).

Em Agosto de 2003, fui transferido para o Tribunal Judicial da Província de Maputo, a que tive o privilégio de presidir. Dito por outras palavras, saí do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo para o Tribunal Judicial da Província de Maputo em 2003 e a ele regressei em 2006.

Com efeito, em 2006, a minha amiga Benvinda Levi, que era Presidente do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo, foi designada Directora do Centro de Formação Jurídica e Judiciária na Matola e eu fui chamado de volta ao Tribunal Judicial da Cidade de Maputo, para o presidir.

Na consulta prévia que me foi feita, pedi para não regressar à 4ª Secção, para não ficar atolado com os processos que havia deixado e passei para a 3ª Secção, que tinha sido da Benvinda. Aqui trabalhei até 30 de Agosto de 2007, altura em que fui designado Procurador-Geral da República.

De 2006 até a minha saída, continuei a trabalhar com toda a equipa de apoio que tinha sido preparada pela Benvinda. Ela tem uma forma muito própria de trabalhar com as pessoas. Ela forma quadros. É uma verdadeira líder. Esses quadros preparados por ela faziam de tudo e eu apenas coordenava os trabalhos, como, aliás, se impunha. Lembro-me dentre os quadros, do Vasco Moiane, ajudante de escrivão na Distribuição, que domina bem aquele jogo de dados para sorteio de processos; Nelson Celestino Sitoe, que cuidava das Finanças, coajuvado por João Muthombene; Juvenal Samora Matusse (assistente); Idília Madalena Milice Banze, que cuidava dos recursos humanos e Telma Joaquim Comé Mathe, que era a secretária particular do presidente. Todos estes quadros tinham trabalhado com a Benvinda e todos foram mantidos no gabinete. Todos os dias eu falava com cada um deles, ainda que fosse só para saber do seu estado de saúde. Pelo bom desempenho desta equipa, eu tinha mais tempo para me ocupar dos processos da 3ª Secção e menos tempo de administração. E, neste período, arrendámos imóveis para a abertura de mais secções laborais e instalámos duas secções comerciais. Assim, o tribunal, de onze secções e doze com a Secção de Instrução Criminal, passou a ter dezassete secções, incluindo a de Instrução Criminal. 

A relação com os juízes e com os funcionários era excelente, por isso, não havia muita demanda interna para resolver. Ocupei-me de melhorar as condições de habitação e de transporte dos magistrados. Pedro Malhaieie, Director Nacional de Administração e Finanças e Património do Tribunal Supremo, muito nos ajudou.

Assim, do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo, só guardo boas recordações.

11. Na PGR

Encontrei uma equipa actuante, com a qual continuei. Mas, chamei de volta o Adriano Boane para Secretário-Geral. Coloquei a Amélia Machava, então Directora de Gabinete, para impulsionar a actividade da magistratura do Ministério Público na Procuradoria da Cidade. Eu conhecia as capacidades dela. Tinha sido das minhas melhores alunas no Centro de Formação Jurídica e Judiciária da Matola e eu achava que aproveitaríamos o melhor dela em actividade processual, como, mais tarde, se verificou que o tempo me viria a dar razão. Tínhamos mais carência de magistrados formados do que agora. O mesmo aconteceu com a Cândida Bila. Com a atitude tomada pelo Presidente da República de exoneração, em bloco, dos Procuradores-erais Adjuntos, fiquei apenas com o Vice PGR Edmundo Carlos Alberto e um Procurador-Geral Adjunto, nomeadamente, Leonardo Erasmo Nhavoto.

Organizei o Gabinete. Chamei o Afonso António Antunes para meu assessor para a Área Criminal. Chamei a Graciett Liudumila Xavier, que já tinha trabalhado comigo na Província de Maputo, na relação de Procuradora Provincial-Chefe, ela, e eu juiz Presidente do Tribunal Judicial da Província de Maputo. Ela passou a ser minha assessora para a Disciplina Interna. Tanto o Antunes como a Graciett, sempre tiveram o tratamento de Procuradores-Gerais Adjuntos. Integrei todos os assessores que tinham sido da equipa do meu antecessor, nomeadamente, Samuel Justino Miambo e Helena Garrine, para Assuntos Gerais, e Sandra Torre do Vale, para Assuntos Específicos. Criei o lugar de assessor de imprensa. Chamei por algum período (contrato a prazo de seis meses) Marcelino Alves que treinou a Georgina Zandamela, esta a quem a requisitei do Tribunal Administrativo, para se ocupar da assessoria de imprensa.

Mais tarde, criei o Gabinete de Imprensa (dirigido pela Georgina Zandamela) e Gabinete de Estudos (dirigido pelo Amorim Bila). Em meio, criei as Direcções de Planificação dirigida pela saudosa Sónia Santos, requisitada do Ministério da Planificação e Desenvolvimento, mais tarde coadjuvada por Armando Secretário Ubisse, requisitado do Ministério da Educação e Cultura; Direcção de Recursos Humanos, dirigida por Selemane Sefo e mais tarde coadjuvada por Idília Margarida Milice Mbanze. Entretanto, Selemane Sefo passaria a assessor do Procurador-Geral da República para Assuntos Administrativos e Idília Banze passou a dirigir os Recursos Humanos. Para Administração e Finanças mantive Henrique Calioio, que mais tarde seria substituído por João Wahiua, um jovem assessor para a área administrativa; Gabinete de Auditoria Interna, dirigido pela Laura Nhancale, da mesma geração do João Wahiua, assessora para a área administrativa. Também chamei, inicialmente, Irene Afonso para assessora para a cooperação internacional, tendo sido mais tarde criado um Gabinete dirigido por Ângelo Matusse. Entretanto, a Irene Afonso ficou, a tempo inteiro, lidando com a representação no Tribunal Administrativo, quando esta passou por concurso, a Procuradora- Geral Adjunta. A nível do Gabinete do Procurador-Geral da República, chamei Arnaldo Abílio Mondlane, requisitado do Ministério da Justiça, onde era Conservador, para dirigir este. Chamei Inês Nhangumbe, da Procuradoria Provincial de Maputo, para minha secretária particular, mais tarde substituída por Jorge Libilo. Para assistente pessoal, chamei Ecelina Navele, que tinha sido minha secretária particular como Juiz Presidente no Tribunal Judicial da Província de Maputo, mais tarde reforcei o corpo de assistentes pessoais, devido à demanda da documentação, tendo chamado Ester Lara Cossa, uma jovem recém licenciada, em cuja formação em exercício eu havia apostado e cujo desempenho veio a provar que eu tinha sido feliz na aposta.

Este processo foi sendo acompanhado com a instalação de órgãos colegiais, com destaque para o Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público. Com a instalação deste, foi necessário propor a nomeação de Procuradores Gerais Adjuntos, depois que haviam sido exonerados os do elenco anterior, menos um, nomeadamente, Leonardo Erasmo Nhavoto. Assim, foram nomeados: André Paulo Cumbe, Taibo Caetano Mucobora e Ângelo Vasco Matusse. Mais tarde foram nomeados Lúcia Maximiano do Amaral e Irene de Oração Afonso. E, muito mais tarde viriam a ser nomeados: Alberto Paulo, Beatriz da Consolação Mateus Buchili e Ana Maria Gemo Bié. Nesta altura, também Adriano Boane havia passado a  Assessor para Assuntos Gerais e Beatriz Buchili, mesmo sendo PGA, manteve a função de Secretária-Geral da PGR. Cumpre notar que, embora fosse de lei, tal não se observava, pelo que a PGR foi das poucas instituições do Estado moçambicano que sempre dinamizou o recurso a concurso público para o exercício de funções com estatuto de categoria de Procurador-Geral Adjunto, e, mesmo em outras funções como as de Secretário-Geral da PGR e do Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público, o que terá impelido também o Governo a seguir o exemplo.

Nesta abordagem, não coloquei as pessoas em função aos órgãos e muito menos as hierarquizei. Mas, havia um núcleo administrativo directo de apoio ao PGR, constituído pelo Director do Gabinete, Secretária/o Particular, assistentes pessoais e assessores. Com este núcleo eu falava todos os dias. Neste núcleo se incluía também o Vice PGR. Do segundo nível de contacto, na área administrativa, o Secretário-Geral, os directores de gabinetes, directores nacionais e de serviços. Do primeiro nível processual, o Vice PGR e os procuradores-gerais adjuntos. Na verdade, os assuntos que chegavam ao PGR, por via de recurso hierárquico ou para a homologação de abstenção eram tratados no Departamento Especializado Criminal e passavam pelo assessor para a Área Criminal e o PGR concordava, mandava melhorar ou mandava reformular. Todos os outros Departamentos não remetiam nada para decisão específica, podendo, ainda assim, consultarem. Na parte administrativa, ia ao plenário da Conta Geral do Estado o Vice PGR. Terei ido uma vez na ausência. Os órgãos colegiais: Conselho Técnico, Conselho Consultivo, Conselho Coordenador e o Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público funcionaram a contento. Há que realçar o papel da Inspecção do Ministério Público, dirigida na altura pelo Rogério Buque.

Paralelamente havia que valorizar o trabalho que tinha sido realizado pelas anteriores gerações de Procuradores-Gerais da República e Procuradores-Gerais Adjuntos. Convidei a todos para colaborar. Os Procuradores-Gerais Adjuntos integrados em outras actividades da sociedade aceitaram, na base de um memorando, leccionar na Faculdade de Direito da UEM e no Centro de Formação Jurídica e Judiciária da Matola. Todos eles eram convidados para actos de Estado ou realizações da PGR. Estava claro que a instituição PGR não começava comigo. Certo dia, a descer para o Gabinete, para o antigo edifico da Julius Nyerere, vi o meu colega, António Paulo Namburete, a empurrar o carro dele, que quase caía aos pedaços. Eu achei que aquilo era uma vergonha para o nosso Estado. Ele tinha sido Procurador-Geral da República. Pensei cá para mim e para os meus botões, em condições normais teria recebido durante esse período retribuição que não lhe colocasse na carência. Mas, entre nós, as dificuldades são enormes. Cheguei ao gabinete, liguei para o Ministro Manuel Chang, que de pronto mandou entregar uma viatura de afectação, para aquisição nos termos da lei. Pedi a ele que não revelasse o que eu tinha lhe pedido. Mas, houve fuga de informação, provavelmente, a partir da Direcção Nacional do Património. Informei o Presidente Armando Emílio Guebuza, que aprovou a minha conduta. Eu sempre tive em conta que os combates e as vitórias do presente só teriam sentido se fossem continuidade do passado.

De um modo geral, na PGR tive muita colaboração de todos os colegas e de todas as instituições do Estado. O Vice-PGR, os quadros do Gabinete do PGR, dos gabinetes de apoio directo ao PGR, por um lado, os PGA, dos departamentos especializados e os órgãos consultivos, por outro, foram uma máquina eficaz para o desempenho dos meus tempos. A nível interno, estava muito à vontade, de tal modo que saia de férias, a máquina funcionava na mesma, eficazmente. Aliás, nunca tive de interromper as férias para atender a serviço, porque estava tudo de conformidade. Samora dizia que quem sabe trabalhar, também sabe descansar e eu segui isso à risca. O Vice PGR dava conta das matérias. Mas, mais do que isso, os departamentos especializados funcionavam sem depender de nenhum capataz. O mais relevante dos quais era o Departamento Especializado Criminal dirigido pela Lúcia Maximiano do Amaral, que recebia apoio do Assessor do PGR para a Área Criminal, Afonso António Antunes.

Um sector essencial para a vida da instituição é o Gabinete Central de Combate à Corrupção. Além da sua instalação em edifício próprio, impunha-se a indicação de uma pessoa íntegra da do nível do Rafael Sebastião, anterior timoneiro. Encontrei essa pessoa em Ana Maria Gemo Bié. Esta moça, assim o posso dizer, aos meus sessenta anos, é de uma responsabilidade sem igual, íntegra, vertical e coerente. Eu já a conhecia, pois tinha trabalhado comigo nas lides processuais, como juiz, mas, também a conhecia de Michafutene onde ambos demos aulas à PRM. Aprendi a conhecê-la e percebi que era pessoa de boa têmpera. E não estava enganado. Mesmo hoje voto sempre a favor dela.

Posso afirmar com convicção, que fiz tudo o que havia por fazer na PGR, nada ficou por fazer, e o mais importante de tudo é ter preparado a instituição para funcionar sem depender de uma pessoa. Os quadros trabalham sem depender da presença de algum capataz. E está visto que assim funciona. Fui sempre defensor da promoção dos jovens a todos os níveis. Mas, nada fiz sozinho, fi-lo em equipa, com recurso aos colectivos institucionais. Eu era, apenas, o capitão do barco.

12. Notas finais:

12.1. Classes leccionadas

Como professor dei aulas aos alunos da pré-primária, da 1ª e 4ª classes na Escola Primária do 5º Bairro de Hókwè. Dei aulas às 3ª e 4ª classes em Mapapa. Apenas não leccionei 2ª classe, mas o fiz no estágio de formação de professores e o meu metodólogo foi Artur Semende Zandamenla. Leccionei, igualmente, 5ª e 6ª classes na Escola Secundária Estrela Vermelha, – disciplina de História. E, 7ª, 8ª e 9º classes na Escola Secundária do Noroeste 1, – disciplina de História.

12.2. Sobrevivente de um ataque das tropas de Ian Smith

Em 5 de Setembro de 1979, saí de Hókwè à Cidade de Chókwè, para tomar o autocarro de Oliveiras Transportes e Turismo Lda., vulgo, Chitonhana ou Conjana, com o destino final a Maputo. Devido às paragens do autocarro da mesma empresa que me levara de Hókwè a Chókwè, o autocarro já tinha partido às 13.00 horas. O autocarro em que viajei para fazer a ligação fazia zona localmente, entre Chókwè e Chilembene. Andava a uma velocidade de camaleão ou de cágado, aliado a que o motorista era uma pessoa de idade, conversadora demais, e não fomos a tempo do autocarro expresso, que até era suposto esperar para levar os passageiros de ligação. Mas, o atraso foi de tal ponto que a carreira das 13.00 horas não podia esperar mais. Até cruzamos com o dito expresso em zona que não era paragem, pouco depois de Lionde. Chegado a Chókwè, eu queria ir a Maputo, para cumprir o meu plano. Apanhei o comboio que fazia Chicualacuala Maputo. Eram sensivelmente 14.00 horas. Bem instalado, restava suportar o tempo das paragens e chegar a Maputo para visitar os meus pais, tanto mais que a minha mãe, que tinha ido de Inharrime a Maputo, estava com alguns problemas de saúde, de que eu me queria inteirar. Como primogénito, tinha obrigação adicional. Esse sonho ficou pelo caminho. Ou, melhor dito, não passou de um sonho, pois se esfumou. Eu estava na carruagem a seguir à máquina. O comboio estava a uma boa velocidade, quando de repente vimos uma senhora que tirou da sua capulana para sinalizar ao maquinista e com gritos de cuidado, párem à mistura. O comboio demora parar e era suposto que um comboio não fosse parado por uma senhora, porque à primeira se podia pensar que ela não estivesse bem de cabeça. Acontece que a senhora estava muito bem mesmo. Estava a alertar de um perigo eminente. O maquinista parou o comboio, porque ao mesmo tempo se apercebia da presença de helicópteros no ar. Eram as tropas de Ian Smith que tinham destruído a Ponte de Mazimuchope. E a senhora estava a alertar-nos, porque o comboio iria, naquela velocidade cair na ponte, e não haveria salvação para ninguém. Quando o comboio parou, a confusão foi muito grande, pois todos queríamos sair, uns pelas portas e outros pelas janelas. Para mim, saltar pela janela era impraticável, por ser muito grande a distância do solo, pois na zona onde o comboio parou, a linha férrea estava muito para cima e não ao nível do solo circundante. Fui um dos últimos a sair. Parei debaixo de um embondeiro ou uma árvore frondosa, não sei bem. Mas, tratava-se de helicópteros. Os pilotos andavam a perseguir as multidões, em voo rasante para as assustar e faziam-no às gargalhadas, como se estivessem a fazer coisa engraçada para rir desse modo. A sorte foi não terem disparado para as pessoas, pois teria sido um massacre. Saí da multidão e andei solitário para não dar campo à procura de grupos. Eu não conhecia aquela zona. Não tinha sentido de orientação. Nem havia tempo para pensar. Andei toda aquela tarde, até que encontrei outros solitários já longe do perímetro dos helicópteros e depois de tanto andarmos, sentámo-nos, de tanto cansaço. De madrugada retomámos a caminhada, à procura dos arrozais do Chókwè, porque, a partir daí, eu chegaria a casa. Fomos dar em Chiaquelane e achada a estrada alcatroada, era fácil regressar à proveniência. Daí caminhei até as machambas do CAIL (Complexo Agro-Industrial do Limpo) para pedir boleia, pois nem dinheiro de transporte tinha. Dinheiro, documentos e tudo o resto tinha ficado no comboio. De explicação em explicação, a dizer que era professor, fui vivendo de favores, de boleia em boleia, até chegar a Hókwè. Como eu tinha saído devidamente autorizado pelas minhas hierarquias, reportei tudo e reconstituí os documentos. Não me esqueço desta data: 5 de Setembro de 1979. Em outros momentos, contar-vos-ei cenas de ataques vividos. Contar-vos-ei também os diversos treinos recebidos para a autodefesa, sobretudo, sob crivo da 8ª Brigada das FAM-FPLM, sob a égide do saudoso Brigadeiro Manuel Maginche.  

13. Considerações finais

Gostaria de terminar considerando duas notas. A primeira, houve algum ambiente pouco confortável com o meu antecessor na PGR, Joaquim Luís Madeira. Acho que nem eu nem ele teremos percebido a origem disso. Tenho um respeito muito grande em relação a Joaquim Luís Madeira. Ele foi meu professor de educação musical na Escola Secundária do Noroeste 1. Foi meu chefe directo duplamente. Como Juiz Presidente do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo, sobretudo, como meu chefe directo da Secção, nomeadamente, na 4ª. Ele escolheu-me a dedo para eu ser seu juiz adjunto nesta secção. Até hoje o trato, não só como meu chefe, mas, como meu amigo e mestre, pela relação que cultivamos e ele me ensinou muita coisa. Mais ainda, trata-se de uma sumidade forense de invejável e inigualável capacidade e competência técnica. As decisões dele são muito bem fundamentadas. Com este cenário, estavam criadas as condições para que não houvesse nenhum ambiente pouco confortável, entre nós. Felizmente, em pouco tempo controlámos este aspecto e voltámos à normalidade. Eu tinha uma boa relação com um amigo comum. Um saudoso General. Falei com ele para me ajudar a ultrapassar o ambiente pouco confortável, a bem da nação, e, igualmente, de nós os dois. De facto, ele me ajudou e fez a intermediação com o que sempre foi meu querido chefe. Ele falou com ele e depois me ligou para que falasse com ele. Falamos. Vencemos os desentendimentos. E voltamos à normalidade. Paralelamente, convidei sempre tanto a ele, meu chefe, como os outros anteriores timoneiros para todos os programas da instituição. Especialmente, convidei o meu antecessor para integrar uma delegação na qual ele ia ser distinguido pela Associação dos Procuradores de África (APA), para que recebesse, pessoalmente, a distinção e pudesse falar de viva voz aos organizadores para agradecer a distinção. Parecendo que não, houve gente que não gostou desse meu gesto. Mas, o Presidente Armando Emílio Guebuza aprovou a minha atitude. Eu acho que agi certo, pois Joaquim Luís Madeira é património do Estado moçambicano. Ele colocou, na sua proporção, a pedra a que alude o nosso Hino Nacional, ao se referir a pedra a pedra construindo o novo dia, para a edificação desta pátria de Mondlane e Samora!

Como o texto já vai longo, como segunda nota, gostaria de me referir aos meus amigos. Tenho numerosíssimos amigos. Se tivesse de os nomear a todos, haveria de me esquecer de uns e outros. Ou não haveria espaço para a sua menção. Mas, em representação de todos ouso mencionar alguns. De todo o modo, há pelo menos cinco que não vou mencioná-los, para evitar, por ora, a sua exposição, podendo vir a fazê-lo noutros momentos. Vou excluir, os meus amigos políticos, bem assim, os meus amigos juízes e procuradores. E a indicação não obedece a nenhuma ordem. Excepcionalmente indicarei dos políticos, uns e outros, por razões que explicarei, em cada caso. O mesmo acontecendo com juízes e procuradores. Aroso Owane, meu colega da Escola Secundária do Noroeste que não o vejo há vários anos; Pedro Abílio Cossa, meu colega na Escola Secundária do Noroeste, que não o vejo há muitos anos e nem sei por onde tem andado; Pedro Abílio Muchate, meu colega da Faculdade de Direito da UEM com quem ia a pé da casa à Faculdade de Direito, não o vejo há anos. Manuel Renato Matusse – este companheiro é um verdadeiro irmão para mim. Convivi com ele em Chókwè. Para quem conhece as casas do antigo Colonato do Limpopo, estávamos em casa geminada, de um lado ele e do outro eu, dirigindo ele a Escola Secundária do Chókwè e eu na Direcção Distrital de Educação e Cultura. Com Renato, numa era sem televisão nem outros divertimentos, conversávamos muito, jantávamos juntos no jardim comum da casa e estávamos empolgados pela Revolução de então. Infelizmente, este meu irmão está numa situação difícil. Eu, por razões de Estado, fico limitado e sem saber como mostrar a minha solidariedade fraterna, sem que isso seja mal interpretado. José Samuel Mabote, meu colega no Chókwè e no Xai-Xai (já falei dele como pai social). Manuel José Macie, meu colega na Educação e Cultura no Xai-Xai e do nível pré-universitário em Nwachicoluane; Nataniel Aurélio Muchanga e Regina Macuacua Muchanga, instrutores de formação de professores (Xai-Xai); Orlando Gomes Langa, meu colega professor (Xai-Xai); Lourenço Matsumana, meu colega professor em Xai-Xai (foi quem me recrutou para o professorado, numa das salas de aulas da Escola Industrial 1º de Maio de Maputo, na qualidade de Responsável Nacional do Ensino Primário); Menezes Roberto, meu colega professor (Xai-Xai); Víctor de Figueiredo Dias Júnior, meu colega professor (Xai-Xai); Ester Enosse Marquel, minha colega professora (Xai-Xai); Lia Salvador Cossa, minha colega professora (Xai-Xai); António Miambo, a título póstumo, meu colega professor (Xai-Xai); a título póstumo, Margarida Micas Aurélio Mugabe, minha colega, professora (Mapapa); Rafael Sebastião, meu colega juiz; Matilde Augusto Mondlane, minha colega Juíza; Vitalina do Carmo Papadakis, minha colega juíza; Paula Machatine Honwana, minha colega juíza; Luís Mabote Júnior, meu colega juiz. Quanto aos meus amigos juízes conselheiros do Tribunal Supremo e aos procuradores gerais adjuntos da PGR, evito indicá-los, por ora, nos termos em que fundamentei anteriormente. A indicação de Rafael Sebastião e Matilde Augusto Mondlane, mesmo sendo juízes conselheiros prende-se com o facto de terem trabalhado comigo nas batalhas da primeira instância. 

Refiro-me também, especialmente, a Lourenço do Rosário (académico); Tomás Matola (gestor); Teodato Mondim da Silva Hunguana (excepção, por já o ter referido em livro anterior); Abdul Carimo Issa (Buda), jurista; Alves Gomes (jornalista); João Maria Moreira de Sousa (Angola); Boaventura de Sousa Santos (Portugal); Bento Rupia Júnior; Dario Delgado Cura (Cuba); Pinto Monteiro (Portugal); Rodrigo Janota (Brasil); Roberto Grugel (Brasil). Em representação de todos os meus amigos Padres e Bispos indico apenas dois Eméritos que muito os admiro: Cardeal Dom Alexandre José Maria dos Santos; Bispo Dom Dinis Salomão Singulane.

Deixei para o fim, a indicação de Patrício Moisés Marrime; Achirafo Abdula; Maria Benvinda Delfina Levi; Filomena José Elias; Alberto José Elias; Sinai Jossefa Nhatitima; Filomena Maximiano Chitsondzo, Alfredo Muchanga e Momad Jossub. Excepcionalmente, indico aqui Adriano Maleiane. Faço-o pelo facto de já o ter feito, publicamente, no livro My Love da Fofoca 2 (p. 15 e ss). Com estes amigos falo frequentemente. Muitas vezes acaba o crédito e um de nós ou os nossos cônjuges ou parceiros correm, a contragosto, para ir comprar crédito no Dumba Nengue, para continuarmos a falar. Por isso, nunca fazemos a ligação à hora da refeição. É maneira de dizer, pois usamos as várias facilidades que as operadoras e as tecnologias oferecem. Se não dissesse assim, não seria my love da fofoca, ainda que jurídica.

Gostaria de terminar indicando que tive dirigentes com quem partilhei pouco tempo. Refiro-me à Filomena Ofiço Munguambe (Directora Provincial), Armando Secretário Ubisse (Director Distrital) – na Educação e Cultura; o saudoso Jorge Marcelino (Inspector-Geral de Finanças); Carlos Davide (aqui David é com “e” mesmo) Cassimo Sotomane e Aníbal Manave, Chefe do Serviço de Recursos Humanos e Director Executivo do CFM – Sul, respectivamente. Alguns destes se tornaram meus amigos até hoje. Também faço menção ao saudoso Alfredo Namitete e Telmina Pereira que me marcaram positivamente, enquanto Juiz Presidente do Tribunal Judicial da Província de Maputo.

Mas, tive dirigentes com os quais trabalhei muito tempo. Estou a falar de líderes, aqueles que os considero perspicazes e dedicados ao trabalho. Atento a que liderança é diferente de chefia. Refiro-me a António Jorge Correia Simões (então Director Provincial de Educação e Cultura de Gaza), ao saudoso Jossias Elias Miambo (então Director Provincial de Educação e Cultura de Gaza), Mário Fumo Bartolomeu Mangaze (então Presidente do Tribunal Supremo) e Armando Emílio Guebuza (então Presidente da República). Todos estes me deram espaço de afirmação a todo o momento, me ouviam e me respeitavam. Posso dizer, sem reservas, que me orgulho dos ensinamentos deles e tenho a sorte de, simultaneamente, ter me tornado amigo deles, ontem, hoje e para todo o sempre!

AMEM!


[1] Chicolocolo, porque ele obrigava as pessoas a saírem das margens da Lagoa de Dongane para povoarem as proximidades da Estrada Nacional nº 1. A ideia era fazer aldeias organizadas ao longo da estrada. Porém, nessa área não havia água, por um lado, e por outro, a população suspeitava que a sua saída das margens do lago, daria lugar à ocupação dessa área pela população branca e ou assimilada. Então, a população questionava: afinal, é obrigatório? Chicolocolo significa à força. Obviamente, mesmo depois de muitas reuniões, as pessoas foram relutantes em sair de uma zona com água para onde seria difícil ter acesso a ela. Isso fez cair o projecto.

[2] A esta matéria voltaremos em outros momentos.

[3] De todo o modo, voltarei a falar deste episódio num outro momento para fornecer mais detalhes que não cabem neste espaço.

[4] Naquela altura, trabalhávamos das 7.30 às 12.00 horas e das 14.00 às 17,00 horas. Ao Sábado era até às 12.00 horas.

[5] É bem possível que eu esteja a trocar os nomes. No Tribunal Judicial da Cidade de Maputo e Tribunal Judicial da Província de Maputo havia mais de dez Matusse em funções de escrivão ou ajudante. Acho que a situação prevalece. Deste modo, posso estar a trocar os nomes, mas não as categorias nem funções.

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