Moçambique e o retorno à economia de guerra: que futuro?

À boleia do my love da fofoca jurídica vamos tratar, desta feita, o tema Moçambique e o retorno à economia de guerra: que futuro?

Parece óbvio perguntar o que o Direito tem a ver com o binómio economia e guerra. Podem perfilar argumentos como os de considerar que o Direito nada tem a ver com a economia nem com a guerra. Pode ser que sim, pode ser que não. A economia mexe com os direitos fundamentais dos cidadãos, o mesmo acontecendo com a guerra. Mas, juridicamente falando, a guerra atropela e coarcta muitos direitos dos cidadãos, desde os primários, refiro-me, a título de exemplo, ao direito à vida, à integridade física, à saúde e à educação, aos da terceira geração, a título de exemplo, o direito do ambiente. A economia mexe com a subsistência da sociedade. De forma verosímil, seria razoável admitir que cada área do saber se situe e se cinja, exclusivamente, ao seu ninho. Ninguém nega isso. Mas, há áreas de contacto. Fora desse quadro, menos filosófico, (sabido que o Direito provém da filosofia), cada macaco no seu galho ou, na famosa expressão de não intromissão em seara alheia. Não preciso, pois de voltar a contar a fábula de Fedro, popularizada entre nós por Lourenço do Rosário, a qual já contei, várias vezes, sobre a não subida do sapateiro para além do joelho.

No teatro de guerra, é frequente a violação dos direitos humanos. A violação é feita pelo invasor que nada tem a ver com o povo.[1] Pior: a simples invasão é, em si própria, violação. E, uma das maiores violações dos direitos humanos, além da vida e da integridade física, prende-se com a comida e tecto, pois a guerra provoca deslocados, pessoas que saem do seu meio habitual, que foram privados de condições de produzir para o seu próprio sustento e ficam na dependência de apoios, passando fome e miséria, faltando tudo e nada, desde a comida, saúde, comodidade, sobretudo, neste aspecto de comodidade, faltando tecto para alojamento. Ou seja, um país vítima de guerra de agressão externa e guerra de agressão interna sempre teria dificuldades de, sozinho, resolver o drama dos deslocados de guerra, sem apoio dos países amigos, pois isso requer muito dinheiro, que não temos. Para termos dinheiro, estávamos sonhando com as poupanças do gás. Mas, ao que tudo indica, isso ainda é uma miragem. Não seremos ainda auto-suficientes, nos próximos dez anos.    

O drama humanitário em Cabo Delgado é muito sério. Um drama sem precedentes. Não tem igual. Igual só o da guerra dos dezasseis anos. Entre outros, a Igreja Católica, a Caritas e outras organizações religiosas e da sociedade civil, por um lado, e, por outro, o Governo e as Agências das Nações Unidas têm feito o que podem. O país precisa de mais apoios nacionais e internacionais. Todos temos que ser sensíveis ao sofrimento dos nossos irmãos. Todos temos que sentir o coração a sangrar, quando vemos uma tragédia humana ou humanitária como aquela. Há pessoas que só são sensíveis quando o drama chega perto de si. Quando atinge a si ou sua família directa. Ou atinge um amigo querido. Outras que são sensíveis à doença quando elas próprias estão doentes. Outras ainda, que só ganham sensibilidade quando o assunto mexe com o seu dinheiro. Quando o assunto mexe com o seu bolso. Aqueles cujo Deus, o deles, é dinheiro. Mas, Cabo Delgado chama-nos a todos à sensibilidade humana. Já sabemos quem são os culpados. Os que atacam o nosso país. Todos nós temos que dar algum contributo para Cabo Delgado. Não sejamos falsos, como os que acompanharam Jesus Cristo, na fatídica, trágica e derradeira caminhada daquela vespertina sexta-feira. Eles, vendo o filho de Deus a sofrer e a cair pelo peso da cruz, apenas se limitavam a dizer: força, mestre! Ou, simplesmente, os soldados da vergonha voltavam a ajudar a colocar a cruz no sítio donde caíra para ele, sozinho, a suportar. Ou seja, colocavam a cruz no ombro ou nos ombros, segundo as escrituras. Mas, para sermos justos, Simão Cireneu ajudou Jesus Cristo a carregar a cruz, em parte da caminhada, até ao Gólgota. Dito isto, não sejamos fariseus, sejamos, sim, complacentes com os nossos irmãos. Sejamos como Cireneu. A sociedade civil, a Cruz Vermelha e o Crescente Vermelho e outras agências nacionais e internacionais têm que fazer mais, para o que está a acontecer em Cabo Delgado, não deixando tudo para a Igreja Católica, Caritas e outras organizações religiosas, Agências das Nações Unidas e para o Governo. E mesmo os que estão a fazer algo, que o façam de forma sistematizada e estruturada. O nosso INGC já deu provas de muita responsabilidade. Devia ser ele a tomar a dianteira. Obviamente, com fiscalização, para se depurarem as habituais investidas de oportunistas. Há os que ficam à espera de crises e dificuldades, para vender facilidades – os corruptos de sempre. Esses devem ser vigiados e neutralizados.

Já ouvi dizer que Cabo Delgado também é Moçambique. Não se pode defender tal refrão. Cabo Delgado é Moçambique. O também só destoa. Cabo Delgado é um torrão de terra de Moçambique. Com os seus habitantes, nacionais e estrangeiros, com a sua cultura, a sua história, a sua vivência e o seu ser, que devem ser preservados. Uma província que tem a terceira maior baía do mundo, com as maiores reservas de gás, que se candidatam em terceiras maiores do mundo, uma província com o Arquipélago das Quirimbas e com imensos recursos minerais, tais como, pedras preciosas, com destaque para o ruby, não pode ser também Moçambique, porque é Moçambique.

Moçambique é membro das Nações Unidas, membro da União Africana, membro da Commonwealth, membro da CPLP, membro da SADC e de organizações islâmicas, entre outras. E paga quotas. Pontualmente. Se essas organizações todas não nos podem ajudar, pelo menos que condenem veementemente a invasão que estamos a sofrer.

Um amigo meu, bem colocado no poder, que evito mencioná-lo, porque sei que não havia de gostar, por um lado, e, por outro, também não quero parecer bem relacionado, conta sempre a seguinte história: três adolescentes foram à caça de ratazanas (rato do mato, comestível). Depois que descobriram os vestígios de ratazanas, decidiram cavar com a utilização da enxada. Dois puseram-se a cavar de um lado e um ficou do lado contrário onde havia um buraco, de onde se presumia que iriam sair os ratos. A tarefa deste terceiro era de agarrar as ratazanas uma a uma e meter no saco. Acontece, porém, que no lugar de ratazana saiu uma cobra. O jovem que tinha as mãos prontas para pegar o que aparecesse agarrou a cobra, pela cabeça ou pelo pescoço. E digo isto porque não sei se uma cobra tem pescoço. A cobra era muito grande, pelo que o nosso adolescente gritou para os companheiros: cobra! Os dois da enxada puseram-se a sete pés gritando: lança-a para longe, lança-a para longe![2] Os companheiros não o lhe foram acudir, como forma de o ajudarem a debelar o perigo que representava para aquele jovem ter a cobra na mão. Espero, pois, que os nossos aliados incondicionais (os outrora chamados naturais), perante o fenómeno que estamos a enfrentar, não nos estejam a dizer, tal como os jovens da cobra gritaram para o amigo: atira-a para longe!

Na verdade, como se não bastasse a crise gerada pela pandemia que grassa todo o mundo, o país está numa fase em que tem que enfrentar o fenómeno da guerra ao mesmo tempo que deve manter a economia a funcionar para o desenvolvimento, para a subsistência do povo e para alimentar as frentes de combate.

Mesmo dentre as agências das Nações Unidas, o Programa Mundial de Alimentação (PMA), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Fundo das Nações Unidas para Infância (UNICEF), cujo empenho, desde já, se elogia e se agradece, mau grado as dificuldades causadas pela pandemia, têm que mostrar mais serviço, fazendo mais, porque têm essa capacidade. Não que o não façam já, como, aliás, acima o digo, mas que podem sistematizar e centralizar melhor o seu nível de intervenção, com o INGC a coordenar. Olhando para as funções destas agências, o PMA, a própria sigla já refere, não preciso de a explicitar. O PNUD tem também aqui responsabilidades, pois não pode haver desenvolvimento, com as pessoas a morrerem e a deslocarem-se de um lado para o outro. Mas, o UNICEF tem-nas ainda mais, pois há crianças afectadas por este flagelo, pois que, além da perca da vida, do sofrimento físico e psicológico, essas crianças estão sem aulas, sem estudar, com os seus professores sendo mortos, seviciados ou deslocados. Isso compromete, sobremaneira, uma geração. Compromete, pela raiz, o futuro de Moçambique.

Dito isto, não há economia sem pessoas a trabalharem e a produzirem; sem estabilidade, sem paz, não há economia a funcionar, em estado de guerra. Do que reportei, fica claro que ocorrem violações de direitos fundamentais, entre outros, os direitos à vida, à integridade física e psicológica, à alimentação, à saúde, à livre circulação de pessoas e bens. Estes direitos são inalienáveis da pessoa humana, cuja reposição se impõe.

Produto de uma insurreição geral armada que se traduziu na Luta de Libertação Nacional, que durou dez anos, os moçambicanos conquistaram a sua autodeterminação. A autodeterminação dos povos é um direito reconhecido pela Carta das Nações Unidas. Assim, Moçambique tendo conquistado ou a sua Independência Nacional a 25 de Junho de 1975, logo em 1976 viu iniciarem-se os ataques rodesianos contra o país, os mais emblemáticos dos quais a Inhazónia e Mapai. No ano seguinte, iniciaram os ataques armados da Renamo. O pretexto para os ataques era combater o comunismo ou, simplesmente, a sua influência. O paradoxo é que a adopção do marxismo-leninismo como perspectiva de construção da sociedade aconteceu em 1977, no 3º Congresso da Frelimo. Ou seja, foi combatido o comunismo antes, mesmo, de ser adoptado. Ou ainda, se alguns deméritos tinha o socialismo adaptado à realidade moçambicana, não lhe foi dada a oportunidade de se lhe deixar experimentar, para ver se dava ou não o seu modelo de desenvolvimento, como uma política de edificação do Estado e da sociedade. Essa possibilidade foi cortada pela raiz. E, anos mais tarde, entrou em cena a África do Sul do Apartheid, com ataques directos a Maputo e Matola, sob o pretexto de perseguição dos guerrilheiros do ANC (African National Congress).[3]

Assim, fica claro que os moçambicanos vêm vivendo em guerra desde a Luta de Libertação Nacional, com interregno de alguns meses em 1975-1976, tendo reiniciado a guerra em 1976 até 1992. Voltou a haver um interregno entre 1992 e 2013 e daí até hoje estamos de novo em guerra, desta feita, em duas frentes de combate, nomeadamente, Manica e Sofala e Cabo Delgado.

 A Constituição da República de Moçambique ao estabelecer que: A República de Moçambique é um Estado independente, soberano, democrático e de justiça social, sendo uno, indivisível e inalienável (artigo 1 e nº 1 do artigo 6) está a delimitar a soberania do poder do povo, politicamente organizado num dado território.

Entre os objectivos fundamentais do Estado situam-se: a defesa da independência e da soberania e a consolidação da unidade nacional [alíneas a) e b) do artigo 11 da CRM].

De facto, a guerra ou as actuais guerras ameaçam a soberania e a integridade territorial e ameaçam a unidade nacional, a nossa maior arma de que sempre nos orgulhamos, herdada dos ensinamentos de Eduardo Mondlane e dinamizada de forma apaixonada por Samora Machel.

Para a valorização da Independência Nacional e a consolidação da unidade nacional, os sucessivos governos de Moçambique têm estado a promover a acção de busca de desenvolvimento integrado.

Com efeito, nos finais da década de 70, o Estado Moçambicano desenhou um plano de desenvolvimento. Esse instrumento foi denominado de Plano Prospectivo Indicativo, tendo como horizonte a década de 80-90 – década da vitória sobre o subdesenvolvimento.

O Plano Prospectivo Indicativo previa o desenvolvimento da agricultura, a escolarização massiva, que daria origem ao Sistema Nacional de Educação, aprovado em 1983, os cuidados primários de saúde, que estão na origem do actual Sistema Nacional de Saúde, a electrificação rural, a industrialização, com a criação de fábricas têxteis alimentadas pelo algodão nacional, nomeadamente, previa-se, entre outros, Texmanta, Têxtil de Mocuba, para além de potenciação das empresas têxteis que já existiam; a construção de cidades de raiz, a exemplo da Cidade de Unango no Niassa. Na verdade, poderíamos continuar a enumerar os méritos deste plano, durante um mês sem que os tivéssemos terminado. E, ao que parece, não teria muitas dificuldades, pois fiz parte das brigadas de divulgação do plano, pelas aldeias, no Chókwè. E, as brigadas tinham um guião bem claro, para a sua divulgação. Era, na verdade, um plano muito mobilizador. Um plano em relação ao qual, no contexto da época, não havia igual. Estou a falar de um período em que a economia era centralmente planificada na perspectiva socialista, em contraposição à economia capitalista, vulgo, economia de mercado.

Infelizmente, este plano não foi executado. Vejamos, entre outras, algumas razões: 1) A guerra dos dezasseis anos, movida pela Renamo, não permitiu que houvesse avanços nesse sentido. A Renamo gozava de apoios do regime racista do Apartheid da África do Sul. 2) E, a guerra que nos foi movida pelo regime racista do Ian Smith, a partir da Rodésia do Sul, hoje Zimbabwé, em retaliação, pelo apoio de Moçambique à luta pela Independência daquele país irmão e vizinho, contribuiu para a queda do plano. 3) A queda do bloco socialista, aliado natural de então de Moçambique, contribuiu, sobremaneira, para o insucesso do plano. Face a esse cenário, sobretudo o da componente guerra, estavam criadas as condições para que não houvesse recursos para financiamento do plano, pois os recursos estavam direccionados para atender à guerra, nomeadamente, para a logística, como seja, compra de material de guerra (aviões militares, armas, munições, viaturas, aquisição da fardamento militar), treino das forças terrestres e heli-transportadas, treino de comandos e de forças especiais, entre outros. Mas, nem todo o material era pago de pronto. Entrava para a conta corrente, para pagamento deferido.[4] Assim, não sobrava dinheiro para o desenvolvimento, ou seja, para a concretização do PPI, um plano de sonho, de cuja beleza não me esqueço, até hoje. Todos os recursos foram direccionados para a guerra. Ou seja, para o seu combate. Nesse período, para alimentar as operações militares, o país endividou-se. Ou seja, recebeu da Europa do Leste, nomeadamente, da extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), material de guerra a crédito, para pagamento posterior. Como é tradição em todo o mundo, os acordos dessa natureza constituem segredo do Estado. Não se sabe como foi definida a modalidade de pagamento, se em espécie (produtos, de tipo camarão) ou em divisas, pela famosa moeda norte americana (o dólar). Mas, contraímos dívida, para pagar depois da guerra. Quanto mais demorasse a guerra, melhor era para os vendedores das armas, pois sem guerra ninguém vende armas para nada. Ou a compra para preparar a guerra é fraca. Assim, a dívida que temos, entre outros países, com a Federação Rússia, que pelas regras de sucessão de Estados é herdeira da URSS, é produto da guerra dos dezasseis anos. Dito de outro modo, terminada a guerra com o Acordo Geral de Paz de Roma, em 1992, temos muitos anos, ainda, pela frente, para pagar a dívida. E ela continua ainda por pagar. Assim, por este andar, pelos factos que se nos apresentam no terreno, ao que tudo indica, parece que o filme está de volta.

Vejamos, primeiro, como Moçambique sobreviveu em tempo de guerra. Os sucessivos governos do saudoso Presidente Samora Moisés Machel tiveram que fazer das tripas coração, para enfrentar os desafios económicos para o país continuar vivo. Na verdade, o encerramento das fronteiras de Moçambique com a Rodésia do Sul, hoje Zimbabwe, fez com que o país perdesse milhões de dólares com a não utilização do Corredor da Beira para as importações e exportações rodesianas, usando o porto e linha férrea, para o transporte de mercadorias, com destaque para combustível. O mesmo aconteceu, quanto à gestão da guerra, com os sucessivos governos do Presidente Joaquim Alberto Chissano. Foi um período muito difícil. Chissano teve de ser forte para gerir a tempestade, desse modo fazendo réplica ao que dizem os economistas, segundo os quais, a economia é uma ciência de afectação de bens escassos a fins alternativos. Nessa escassez de recursos materiais e financeiros, conseguiu pôr o país a andar. Apenas os sucessivos governos do Presidente Armando Emílio Guebuza não tiveram o ciclo de guerra, senão o início das conhecidas hostilidades, já no final do seu último mandato. Mas, foi, efectivamente, nos sucessivos governos de Samora Machel e de Joaquim Chissano que se impunha gerir as divisas com as pontas das unhas, para que não faltasse nada, quer para a guerra, quer para a alimentação do povo. E, durante esse período, os governos de Moçambique foram provando que eram capazes de controlar a inflação e assegurar a economia. A circulação pelas principais estradas do país e pelos grandes projectos, como o de Inhassune Ramalhusca e da Sazol eram com recurso a escoltas militares, com altos encargos financeiros para a sua manutenção, e, ainda assim, não escapavam aos ataques. A economia estava de rastos e não havia como escondê-lo.

Voltando ao meu predilecto PPI, o mesmo previa uma indústria ligeira, e pouco mais. O País tinha condições de aproveitamento e transformação das empresas, maioritariamente herdadas do tempo colonial, para dar continuidade ao novo modelo de desenvolvimento. O País tinha capacidade para a montagem da indústria de fiação e indústria têxtil, a indústria de calçado e roupa (com a UFA – União Fabril de Moçambique; Encatex, Enacomotex); a indústria de montagem de carroçaria ou metalo-mecânica, entre camiões, autocarros (Cometal Mometal, A Forjadora); de produção de vidro e garrafas, tal como a Vidreira de Moçambique; de produção de pneus, tal como, a Mabor de Moçambique; as empresas de pesca, empresas agro-pecuárias, de produção, entre outros, de arroz, cana-de-açúcar. Todos estes sonhos se evaporaram com a guerra.

Samora Machel, fora do quadro do PPI, criou a Secretaria de Estado para o Desenvolvimento Acelerado da Região do Limpopo e Incomáti, SERLI, com sede em Chókwè. Esta Secretaria de Estado tinha como missão assegurar a agricultura, a indústria ligeira e alimentar, a partir de produtos agrícolas e pecuários produzindo leite, queijo, fiambre, chouriço, linguiça, diversos lacticínios. Havia um sonho de se transformar o vale do Rio Limpopo em celeiro do País, na produção de arroz e milho, para abastecimento do povo. Este projecto sucumbiu com a guerra. Joaquim Chissano apostou na criação de um projecto de desenvolvimento do Vale do Zambeze. Este projecto visava a transformação da bacia do Rio Zambeze em uma zona produtiva e com uma agricultura industrial. Além da guerra, o projecto não andou por problemas de gestão. Armando Guebuza transformou o Gabinete do Vale do Zambeze em Instituto. Projectou o Pró-savana, com bons objectivos, com vista ao empoderamento dos camponeses moçambicanos para a produção de comida para a erradicação da fome, um fenómeno que, ciclicamente, grassa em Moçambique, com o principal culpado à solta, o fenómeno el nino, com secas e cheias, ciclones e vendavais à mistura. Como o reconheceu o Secretário-Geral das Nações Unidas, Eng. António Guterres, são os países industrializados que destroem a camada do ozono e é disso que Moçambique sofre as consequências. Na verdade, há que passar do reconhecimento à prática, à compensação. Em cumprimento da Resolução nº 253, de 29 de Maio de 1968, das Nações Unidas[5], Moçambique encerrou as fronteiras com a Rodésia do Sul, com promessa de que seria compensado pelos prejuízos financeiros que daí adviessem. Até hoje, o País aguarda a referida compensação. Ainda virá? Depois da nossa era!!!

Hoje, fala-se do Sustenta. E, tudo indica que é um projecto com pernas para andar, a avaliar pelas alfaias agrícolas e acessórios que são distribuídos aos camponeses. Paralelamente, o Banco Nacional Investimento SA (BNI), como Banco do Estado, tem dado o seu contributo, aos projectos de desenvolvimento, e aos poucos, vai apresentando alguma robustez na praça e vai ganhando credibilidade nos mercados interno e externo. As políticas neste sentido estão bem encaminhadas. Recentemente, o Presidente Filipe Nyusi criou a Agência do Desenvolvimento Integrado do Norte (ADIN). Uma excelente iniciativa. Todos nós estamos aplaudindo a iniciativa. O Norte merece. Há que aproveitar a oportunidade para revisitar o PPI, de modo a conferir o que estava previsto para aquela zona. Todos nós, como país, temos uma dívida de gratidão para com o Norte de Moçambique, sobretudo para com as províncias de Cabo Delgado e Niassa, que enfrentaram a Guerra que se traduziu na Luta Armada de Libertação Nacional. Foram estas duas províncias que mais suportaram os horrores da guerra. Sofreram os bombardeamentos do exército colonial português. Os mais violentos dos quais terão sido os havidos no quadro da famigerada Operação Nó Górdio, sob a liderança de Kaúlza de Arriaga, com um total de trinta e cinco mil militares de infantaria, pára-quedistas, fuzileiros, comandos e tropas especiais. Este peso todo da guerra recaiu sobre Cabo Delgado, Niassa e Nampula (de onde partia a tropa portuguesa, ou seja, onde tinha instalado o seu comando). Foram despejadas toneladas de bombas, muitos aviões, homens e uma infantaria fugaz para dizimar a população de Cabo Delgado e Niassa (e Nampula). Esta população suportou os horrores da guerra até chegarmos à Independência. Outras frentes foram abertas mais tarde, as de Tete e de Manica e Sofala. Mas, Cabo Delgado e Niassa constituem e constituíram o berço da luta. Assim, é importante repor o que foi destruído pela guerra da Luta da Libertação. É ainda importante repor o que foi destruído pela guerra dos dezasseis anos. Que, aliás, não é pouco. E é importante inviabilizar o avanço dos insurgentes para que, finalmente, essas populações possam viver em paz, usufruindo do resultado de tanto esforço suportado, durante anos a fio.

Na verdade, a narrativa que temos estado a construir no discurso oficial de que os ataques estão a acontecer em Cabo Delgado e na Zona Centro deveria ser de outro modo. Os ataques estão a acontecer contra Moçambique, no seu todo. O que está sendo atacado é todo o País. Quando se ataca Cabo Delgado, não se está atacar qualquer outro sítio que não Moçambique. Quando o olho está doente no corpo humano é toda a pessoa que está doente. Quando o estômago dói é a pessoa que está doente. As dores das partes do corpo são dores da própria pessoa. E não há como separar as partes do todo. Se alguém tem um cancro instalado em qualquer parte do corpo, o mesmo o vai corroer, até matar a pessoa.[6] A guerra que se traduziu na Luta de Libertação Nacional não precisou de se estender a todas as províncias para ser ganha. Bastou o desgaste da máquina colonial em algumas zonas, para o inimigo se render. Assim, está claro que quando se ataca Cabo Delgado é todo um ataque a Moçambique. Está claro que os ataques na Zona Centro são direccionados a todo o Moçambique. É um país todo que deve revoltar-se. Com um não veemente à resignação.

Assim, todo o exercício de desenvolvimento do Norte deve ser articulado com o cenário de guerra que grassa o País. Há que questionar-se: porque os ataques ocorrem perto de um grande projecto de exploração de gás natural liquefeito? Porque os ataques não são noutros pontos? Porque os refugiados fogem para Niassa e Nampula? Cabo Delgado, além das Ilhas que constituem o arquipélago das Quirimbas tem muitas ilhas e ilhotas pelo mar dentro, tem os portos terciários de Pemba e de Mocímboa da Praia e tem os aeroportos de Pemba e de Mocímboa da Praia. Nessas ilhas e ilhotas espalhadas pelo mar dentro podem, facilmente, os insurgentes se instalar, para controlar e atacar os barcos que irão bombear o gás, pelo qual tanto ansiamos, para que seja objecto do nosso desenvolvimento. Porquê se atacam os distritos que estão à volta de Palma, epicentro da exploração do gás, em Afungi? E do lado da Tanzania que já está explorar o gás, na mesma bacia sedimentar, porque os insurgentes atacam a periferia dos projectos de gás? Todos estes cenários devem ser tidos em conta por cada moçambicano, e, sobretudo, por aqueles que estão na linha da frente, pelos nossos académicos e pelos nossos estrategas militares. Este país formou muitos quadros dessa área na Europa do Leste, China, Cuba, entre outros, e mesmo dentro do território nacional. Agora, é tempo de o país colher o retorno do seu investimento. Esses quadros devem mostrar serviço ou, pelo menos, que peçam às hierarquias para mostrar serviço (quer estejam no activo, quer estejam na reserva).

Mas, é necessário, mesmo, um desenvolvimento integrado. Não faz sentido que em Mocímboa da Praia o pescado se deteriore sem um camião frigorífico para compra e transporte para Pemba ou mesmo para Maputo, onde há consumidores à farta. Não faz sentido que em Niassa apodreça o feijão mais saboroso do mundo, por falta de escoamento para Nampula ou outros pontos do país, com consumidores a viverem na dependência do estrangeiro. Nem mesmo faz sentido que o saboroso peixe do Lago Niassa fique sem mercado, por falta de escoamento.

Estas actividades podem ser recuperadas, mais ou menos, do PPI, para serem implementadas, obviamente, tendo em conta que o PPI estava desenhado na perspectiva de uma economia centralizada, podendo sofrer as devidas adaptações, para o seu estabelecimento e execução no contexto da economia de mercado. Estas actividades podem ser recuperadas também a partir da Agenda 2025 transformada em lei (Resolução da Assembleia da República), cujo desenho pertenceu a uma legião de moçambicanos ilustres, um Comité de Conselheiros da Agenda 2025, no consulado do Presidente Joaquim Chissano. Mas, é preciso reconhecer que é assim, como se funciona. São os sábios, referidos pelo Platão, que se ocupam disso. Mesmo a favor, ou contra a vontade de nós os outros. Com efeito, na sociedade ateniense, os súbditos estavam graduados em cidadãos, metecos (estrangeiros) e escravos. Os cidadãos, por sua vez, estavam graduados em realeza, nobreza, clero e abaixo deles, os artífices e o povo. A assessorar a realeza, estavam os sábios, os quais mais não faziam, se não ganhar a vida por produzir ideias. Daí que temos até hoje, os filósofos, que só se limitam a dizer o que os outros devem fazer. Não se pode nem se deve cometer o erro de os colocar a fazer, pois são reportório da pior desgraça nesse sentido. Uma coisa é dizer o que deve ser feito e como deve ser feito e outra coisa é fazer. Seria um erro pôr um crítico a fazer, porque ficaríamos sem o crítico, por um lado, e, por outro, tem sido provado que os críticos são maus executores. E podem ser recuperados os indicadores do MARP. Hoje, temos alguma indústria, nomeadamente, a MOZAL (passe a publicidade). Hoje temos muitas fábricas de cimento, em todas as regiões. Cimento que deve ser aproveitado para a melhoria da habitação do povo. Hoje temos mais fábricas de cerveja. Temos mais fábricas de refrigerantes. O Presidente Samora defendia que o povo tinha que ter comida, bebida e divertimento. Por isso, não deviam faltar divisas para compra de comida. Não deviam faltar divisas para compra de matéria-prima para a produção de cerveja e refrigerantes. E, não deviam faltar divisas para compra de matéria-prima para a produção de material desportivo. Era um homem que tinha lido muito. Sabia que o Homem não vive só de pão, mas também de circo.

São estes desafios que, retomados com uma ampla discussão popular, não só pelas elites governantes e meia dúzia de iluminados académicos, como, sobretudo, por todo um povo que tem memoria e inteligência melhor que a de cada um separadamente, podem ser aproveitados para recuperar a utopia de gestão de desenvolvimento de Moçambique, ao mesmo tempo que sustentar a guerra que se impõe.

Recordando um passado não muito distante, mas, pelo menos leva meia geração, por causa da guerra, nas províncias, a segunda pessoa mais importante depois do governador era o comandante militar. E, no contexto de partido único, o comandante militar da província era, simultâneamente, o segundo secretário provincial do partido Frelimo, pois, o primeiro secretário era o governador. Isso significa que, em tempo de guerra, a instituição militar assume relevância inquestionável, sem que isso valha para apagar o peso do poder civil, em regime não militarizado, com respeito às instituições civis democráticas. Mas, a guerra é guerra. Não é um convite para almoço, como dizia Mao-Tse-Tung.  

Na gíria, é comum referir que a guerra se prepara em tempo de paz e a paz se prepara em tempo de guerra. Na verdade, estando o País em guerra, há que ter-se sempre a perspectiva do que fazer quando a guerra terminar, para a reconstrução das aldeias, vilas e cidades destruídas. O que fazer para reconstruir o tecido social e a dignidade humana vandalizados. Os maiores danos de uma guerra são: as vidas das pessoas, a integridade física, o ser das pessoas e os bens. O que é mais difícil reconstruir é a parte do ser, a parte sentimental, a parte em que, para as pessoas, a vida perdeu sentido e de recuperação quase irreversível.  

A questão de desenvolvimento é também um problema de gestão dos recursos financeiros disponíveis. Os gestores dos fundos não ajudam os governos. Gerem incorrectamente os fundos, de tal modo que, não se percebem os avanços do Governo ou do Estado no seu todo, em razão deles. Se os fundos fossem bem geridos, haveríamos de ver os resultados. Seria mau generalizar. Alguns podem estar a ser bem geridos. Outros nem tanto. Temos vários fundos de fomento. Passo a nomear alguns: Fundo de Estradas, Fundo de Fomento à Habitação; Fundo do Turismo; Fundo Nacional do Desenvolvimento Sustentável; Fundo de Promoção Desportiva; Fundo de Fomento Pesqueiro; Fundo Social Básico; Fundo de Reabilitação Económica; Fundo da Paz e Reconciliação; Fundo para a Indústria Extractiva; Fundo de Energias Renováveis; Fundo de Formação Profissional. Mesmo a GAPI, sociedade de investimento, é um fundo. Como referi, indiquei alguns fundos. Não esgotei. Há muitos mais. A questão que não pode calar é: qual é o retorno para o Estado destes fundos todos? Deixo a resposta em aberto.

Quanto ao desenvolvimento ainda, há que encontrar uma forma de olhar para as periferias das cidades, a partir, mesmo, de Maputo. Há muita gente, em bairros como Mafalala, Chamanculo, Polana Caniço, entre outros, a viver em condições sub-humanas ou desumanas. Para constatar isso, não é necessário fazer muito esforço, é só passear por essas bandas em qualquer dia de Deus. O mesmo acontece, em outras cidades pelo País fora, em bairros como, ente outros, Munhava Matope, Cariacó ou Muhaivire. Os bairros periféricos têm sérios problemas de saneamento do meio, principalmente, em períodos chuvosos.

Mas, mais grave, as populações desses bairros periféricos carecem de pão. Falta comida. Morrem de fome. E isto, sabido que a fome é dos maiores inimigos das pessoas. E, mesmo sem recorrer às estatísticas, que, sendo relevantes, são enganadoras. As províncias de Niassa, Cabo Delgado, Inhambane e Gaza apresentam acentuados índices de pobreza. Tal como a pobreza rural, a pobreza urbana é, também, uma das mais acentuadas calamidades na vida dos cidadãos. Não é em vão que os sucessivos governos do Presidente Joaquim Chissano deram prioridade aos Corredores de Maputo, Beira, Nacala, entre outros, para catapultar o desenvolvimento regional e, consequentemente, o nacional e para abranger as populações residentes ao longo desses corredores. Iniciou, também, nesse período, a criação de zonas francas, que foram continuadas pelo seu sucessor. Não foi em vão, que o Presidente Armando Guebuza, no seu consulado criou os chamados sete milhões para os distritos e um fundo para o combate à pobreza urbana. Na verdade, os sete milhões eram uma referência meramente formal. Todos os distritos já recebiam muito mais de sete milhões. De resto, os sete milhões eram nominais. Isso faz lembrar o chapa cem. Já não há chapa de cem meticais. O chapa é muito mais que isso. Faz lembrar três cem. Acredito que é muito mais que isso. Seria muito complicado para o vendedor ter lucro vendendo três cervejas por cem meticais. A menos que fosse da quota de publicidade oferecida e vendida ilegalmente contra as instruções da cervejeira.

Agora, passo a explicar porque as estatísticas são enganadoras. Sim, as estatísticas são enganadoras. Para que não se pense que sou contra a ciência de resultados numéricos passo a detalhar o que digo, com alguns exemplos. Vamos supor, que em resultado de algum dilúvio, dois cidadãos ficam cercados numa ilha de terra sobrada, que não dá para pronto-socorro. Sobrevoa um helicóptero e atira um frango assado para os dois se repartirem na mesma proporção. Metade metade. Ou fifty fifty, como se costuma dizer. As entidades oficiais consideram, para efeitos estatísticos, que de fome os dois não morrerão, pois têm farnel até ao dia seguinte para socorro. Debalde. Se o mais forte come sozinho todo o frango, o outro vai morrer de fome, à mesma. Este é um exemplo paradigmático, para demonstrar que as estatísticas sendo boas, têm que ser questionadas permanentemente.

Como alguns podem duvidar da minha defesa sobre a fragilidade desta ciência de informações médias, passo a dar mais alguns exemplos. A repartição da riqueza num país é feita olhando para o rendimento geral nacional e dividir pelo número de habitantes para se ter a proporção de quanto tem cada pessoa. Assim, o que resultar dessa divisão é o que beneficia a cada cidadão. O que acontece é que, em todos os países, pode uma minoria ter muitos milhões de dólares por dia e a maioria abaixo disso ou com nada (com zero dólar por dia). Mas, vou dar um exemplo mais simples de perceber. Em Moçambique se pode contar o número de bois (bovinos) e se chegar à conclusão de que existem noventa milhões de bovinos para trinta milhões de habitantes e, logo, se concluir que, cada moçambicano tem, pelo menos, um boi. Ou contam-se as viaturas, chega-se à conclusão de que existem três milhões de viaturas, logo, cada moçambicano tem zero virgula uma viatura. Ou seja, cada um não tem carro na verdade, só tem uma peça de carro, nomeadamente, pára-choques, pneus, chassis, etc, o que não é verdade. Há gente com mais de cinquenta viaturas, por um lado, enquanto, por outro lado, há gente sem uma única viatura. O mesmo poderia acontecer com bicicletas, motorizadas, por aí fora. Mas, mais grave, é na comida e tecto. Pode se chegar à conclusão de que todos os moçambicanos comem a mesma proporção, quando, na verdade, não. Ou ainda, pensar que todos têm tecto, quando, na verdade, não. Portanto, concluindo, resulta evidente que as estatísticas são excelentes e necessárias, mas devem ser lidas de forma correcta, de modo a não se adulterar a verdade dos factos. E, por isso, não é em vão que o Presidente Filipe Nyusi dá prioridade à produção, às vias de acesso, à electrificação rural e ao fornecimento de água. Tudo isso, e um pouco mais, visa o desenvolvimento equilibrado do País e visa garantir direitos básicos de subsistência de um povo, à guisa do contrato social, de Jean Jacques Rousseau.

Mas, para sermos justos, todos os governos de Moçambique se preocupam com questões básicas e essenciais para a vida do povo, desde a produção de comida no campo e mesmo nas cidades, criando zonas verdes, para a produção de comida para a alimentação do povo, ao relançamento da economia rural e urbana, fornecimento de água potável, saúde e educação gratuitas. Há sempre um esforço de concretização dos direitos constitucionais programáticos a bem dos cidadãos.

Luísa Dias Diogo, antiga Primeira-Ministra de Moçambique (2004-2010), reporta a situação negocial difícil com os parceiros multilaterais, e, especialmente, com o Banco Mundial. O Banco Mundial dizia: se vocês continuarem a administrar divisas como estão a fazer, não vão conseguir aumentar as exportações. As empresas exportadoras não vão conseguir atingir o objectivo que elas pretendem. E ela refere que como Governo, Nós queríamos por um lado, que as empresas exportadoras pudessem exportar mais, mas, por outro lado, queríamos ter a certeza de que aquelas divisas iam ao lugar certo, que havia uma protecção necessária às próprias reservas cambiais.[7]

Ainda no quadro de busca de apoios para beneficiar do HIPC, no contexto de perdão da dívida, com o Clube de Paris assumindo relevância, foi à busca de simpatias junto aos países Nórdicos. Aqui também, Luísa Diogo refere que: Recordo-me que, nessa viagem, a cooperação dinamarquesa convidou várias pessoas. Esperávamos 200 pessoas e vieram 600. Estivemos com elas numa sala, para sensibilizá-las para o arranque de uma campanha para o perdão da dívida. John Flento disse: Excelência: aqui está a sensibilidade dinamarquesa. Pode falar. E, Luísa Diogo refere que: depois dos cumprimentos formais, disse: Eu vim a Dinamarca para perguntar se o meu coração pode falar para o vosso coração sobre o que está a acontecer lá, em minha casa, em Moçambique. Passei, então, a discernir sobre a insustentabilidade da dívida e a ansiedade dos moçambicanos para se desenvolverem.[8]

Estes extractos mostram os esforços dos sucessivos Governos de Moçambique na busca de alternativas para o desenvolvimento, sobretudo, numa situação de gestão do País terminada a guerra.

Daí que, na fase actual, mesmo que a guerra termine, como vai terminar, nada é eterno, há que preparar a guerra em tempo de paz e a paz em tempo de guerra. O País não se pode dar ao luxo de pensar que basta não querer que haja guerra, esta deixará de existir e estará em paz. Essa paz celestial só num mundo de sonho. Um País como Moçambique, com tantos recursos por explorar, com uma costa extensa e com um mar e uma Zona Económica Exclusiva das maiores, não se pode dar ao luxo de não se preparar para a guerra em tempo de paz. Os recursos de Moçambique suscitam cobiça dos que não os têm ou os têm poucos. Nós, os próprios moçambicanos, muitas vezes, não temos noção disso. Muitas vezes pensamos que fomos amaldiçoados por Deus e ficámos com a parte mais problemática, devido às cheias, secas e outras calamidades. Mas, nós fomos abençoados por Deus. Somos um povo que Deus escolheu a dedo para habitar Moçambique. Só dentro da província moçambicana do Niassa cabem muitos países europeus ou asiáticos. Nós podemos sentar numa praia e comer um verdadeiro peixe fresco, a saltitar ainda, saído do mar. Outros povos nunca viram um peixe vivo. Muito menos uma gazela. Outros países não têm as formações rochosas com a água suficiente que permitem construir barragens como as de Cabora Bassa, e a projectada Cabora Bassa Norte, ou a exemplo de Mphanda Nkwuwa, entre outras. Nós temos muitas reservas e parques naturais. Muitas florestas nativas. Muitas florestas míticas. Um país, com, entre outros, os rios Zambeze e Limpopo, com grandes bacias para a produção de regadio, só pode ter sido abençoado por Deus. Não em vão, que o Cardeal Dom Alexandre Maria dos Santos, Arcebispo Emérito de Maputo, nos tempos áureos do seu episcopado, se empolgava com a maravilha de Moçambique e sonhava com uma linha férrea a ligar o Rovuma ao Maputo. Ainda que não a tanto, mas, não fosse o sonho dele, não teríamos a Universidade S. Tomás (passe a publicidade) em progresso. Sonhar é bom, acordado ou não. Para o bem do corpo e da alma. E, já não falo de sinais de petróleo e gás, de ouro e pedras preciosas, madeiras e plantas medicinais diversas. Precisamos tão-somente de apostar na educação, de acreditar que é possível lutar e vencer, acreditar que somos auto-suficientes. Dito isto, Moçambique goza de vantagens comparativas em relação a muitos outros países, desde logo, na nossa Região Austral, os do hinterland. Os povos amigos, por mais aliados que sejam, só vêem ajudar-nos, a responsabilidade primária é nossa. Nós mesmos, moçambicanos. Já lá vai o tempo em que um projecto de certo valor era desenhado para a vinda de técnicos estrangeiros, pelo período de duração do mesmo. Os técnicos vinham de fora do País, arrendavam casas em zonas nobres, a preço concordante, alugavam viaturas, das mais luxuosas possíveis, ou, simplesmente compravam, e recebiam salários confortáveis do mesmo projecto. Ou seja, noventa e cinco por cento dos encargos do projecto eram para despesas com expatriados e o País ficava em prejuízo e com a consequente dívida, para além de danos e destruições deixados pelo projecto e pelos respectivos técnicos. Agora estamos mais organizados para saber recusar gato por lebre

Mas, não haverá nenhuma utopia por construir, enquanto a guerra esfrangalhar Moçambique. Não haverá desenvolvimento nem criação da riqueza, enquanto a guerra fizer das suas. O País precisa de se preparar para a economia de guerra. Produzir comida para alimentar as frentes de combate. Canalizar recursos para a compra de material militar. Comprar aviões militares. Comprar drones para localizar o inimigo. Inventar uma máquina muito robusta de informação e propaganda, muito melhor e superior à do inimigo. E tudo isso requer dinheiro. Toda a organização requer dinheiro. Tudo isso requer tecnologia moderna. E a tecnologia moderna tem custos a dobrar, ou a quadruplicar. Há que criar riqueza para aguentar com a guerra. Não se esperam momentos fáceis. Serão mesmo difíceis. Há que recuperar a palavra de ordem: a pátria chama por nós. A pátria chama por cada um de nós e cada um de nós deve dar o seu contributo à pátria, das mais variadas formas. Criticar os que estão no activo e nas frentes de combate é muito fácil, mas, o mais importante nesta fase não é criticar é dar algum contributo para sairmos colectivamente do momento difícil. Há especialistas em criticar. Há os que se acham a reserva moral da sociedade. Basta que eles digam algo, é isso que deve ser considerado correcto. Isso cheira a arrogância ou a ignorância indesculpável. Ninguém tem o monopólio da certeza, para uma realidade social complexa como a moçambicana. Mas, sem que tal impeça a crítica, no final do dia, há que perguntar: qual é a saída? Eles costumam responder: não sei, eu só indiquei o que está mal. Poderíamos desenvolver mais este raciocínio. Mas, não podemos cair na triste perspectiva de sermos conotados com quem não gosta que se critique algo. Até porque, somos do tempo de crítica a auto-crítica. Não terminava uma reunião sem esse ponto. Que se resumia na avaliação de conduta dos integrantes de qualquer organização. E a conduta mais desviante da época era a corrupção material e sexual.

O País precisa de adoptar soluções inovadoras, dando mais espaço de afirmação aos jovens. Os jovens devem conquistar o espaço, por mérito próprio. Devem lutar pela afirmação. Mas, os mais velhos devem ter a coragem de passar o testemunho. Não se pode colocar os mais novos num beco sem saída. Há que experimentar soluções diferentes. Usar as mesmas soluções e esperar resultados diferentes soa a insanidade. E, também, há que encontrar formas de não usar as mesmas pessoas que provaram insucesso, para delas se esperar sucesso ou resultados diferentes. Constitui prática que um director de serviço do Estado ou outro ou o director de uma empresa seja transferido de uma empresa para outra, hoje, a denominação mudou para presidente do conselho de administração, dizia, esse dirigente que não valha para uma empresa é transferido ou nomeado para outra.

Filipe Ribas escreveu há vários anos, um artigo segundo o qual: uma vez director, sempre director. Temos uma cultura de sempre querermos mantermos o estatuto de director a quem tenha provado ser incapaz. Como, infelizmente, ainda acontece nas nossas escolas, um professor engravida uma aluna e é transferido para outra escola, para continuar a engravidar outras alunas. Isso é resultado de compromissos incindíveis, de nepotismo e lambebotismo cúmplice. Isso lembra-me também, quando se liga para alguém e se anuncia apenas pelo nome. Depois de muita busca vem a admiração, porque não disse que se tratava de Excelência? Trata-se de uma moda, em que no mundo de sonhar acordado e falando os filhos atendem chamadas, porque os pais estão momentaneamente impedidos, respondem que Sua Excelência papá vai retornar. Quando não seja no mesmo mundo Sua Excelência marido vai retornar. Não sabemos ser nós mesmos, o nosso valor vir do que somos, dependemos do empréstimo de um título efémero, para figurarmos na página de importância. E é verdade, em alguns casos, ainda que muito raros, nos buffet de casamentos ou outras festas já ouvi esposas a dizer ao servente de mesa: leva o prato de Sua Excelência, no lugar de peço para levar o prato do meu marido. Ou, na pior das hipóteses, do teu chefe. E, o pior de tudo, é que isso parece normal. Samora Machel conta, num dos discursos que andam pela praça, que os dirigentes gostam de se fazer rodear no serviço e em casa de uma legião de servidores. Se é director, dá orientações no serviço e em casa (a familiares e afins) ou se é comandante dá ordens militares no serviço e em casa, para mostrar que é chefe! Dá ordens em voz de comando. Só falta obrigar à família que responda: às ordens! Pode se ser chefe sem o demonstrar. Um bom dirigente é um líder que orienta pelo exemplo, pela sua conduta e não pela ostentação. Só assim, se pode ter líder e não chefe. Chefes há muitos, mas líderes são muito poucos. E nós não precisamos de chefes, mas sim de líderes.

Mas, compreende-se. Trata-se, em alguns casos, de reminiscência do Estado provedor, por um lado, e, por outro, da famosa expressão aguardar novas ordens. Um combatente importante e destacado, que evito referi-lo, pela cultura que estou a seguir, contou-me sobre a origem da expressão aguardar novas ordens. Durante a Luta Armada de Libertação Nacional, regularmente, os dirigentes aos diversos níveis, iam a Nachingweia. Era um centro de preparação político-militar. Ou seja, não era só para preparar militarmente (saber disparar e matar o inimigo), mas, sobretudo, politicamente (entre outros, saber a natureza da luta e saber que era preciso matar o inimigo, só como último recurso, porque a captura era também importante). Essa ida regular a Nachingweia de dirigentes era acompanhada pelo chefe, o comandante do centro, que dava periodicamente relatório à direcção. O trabalho, no centro compreendia: preparação político-militar, actividades recreativas, cuidar de machamba, hortas, cozinhar, entre outros serviços de subsistência colectiva. O que não realizasse esses trabalhos puxando pelos seus galões de chefe, ou que murmurasse, mesmo cumprindo, levava mais tempo, até que demonstrasse obediência. Assim, estes estavam a aguardar novas ordens, por muito tempo. Já os cumpridores, demoravam menos tempo. Obviamente, não estamos nesse momento histórico. As pessoas têm que saber servir e voltar à sua situação anterior. Voltar à casa. Se é professor e foi deputado, volta à docência, não fica a aguardar novas ordens para um novo cargo. Se é medico, idem. Se é advogado, idem. Quem diz deputado diz ministro ou qualquer outra função de direcção e chefia. Se antes da função era lobista, que volte a isso. Se era operário qualificado, volte a essa categoria. De todo o modo, não podemos cometer o erro de que se era desempregado, volta ao desemprego, porque seria sandice demais, da nossa parte. Ou seja, o que pretendemos dizer é que ninguém deve ter vergonha, nem complexo, de voltar à sua situação profissional anterior, de retomar a sua profissão, porque as funções de direcção e chefia não são categoria. Apenas a categoria é irremovível. Assim, poderíamos contribuir para que Filipe Ribas não tivesse razão de uma vez director, sempre director. Por enquanto, parece que tem. Há, contudo, funções e funções. Dos estadistas, dos oficiais das forças de defesa e segurança, e aquelas cujos cargos correspondem a categorias profissionais. Aí, não há como. Ou, com as devidas adaptações.

O País precisa de rever as leis do serviço militar. O País precisa de mostrar aos jovens a importância da instituição militar, com a busca de exemplos dos nossos melhores modelos de oficialato nessa área (quer os do activo, quer os da reserva). O País precisa de especializar e capacitar as procuradorias e os tribunais para manuseamento e tratamento dos crimes militares[9] (no sentido de crimes contra a segurança do Estado). Quanto mais não seja, encontrar formas de capacitar os actuais procuradores e juízes, em intercâmbio com os militares, para o tratamento responsável dos crimes em curso, sob pena de continuarmos a ver multidões submetidas a julgamento e, por falta de provas ou sua insuficiência, ocorrerem solturas por absolvição, na mesma proporção dos efectivos inerentes aos feitos submetidos a juízo. Do ponto de vista militar, se o inimigo foi capturado em pleno combate, com ou sem arma, não há dúvidas que é aquele. Se é um agente de reconhecimento que é capturado, é aquele, e isso é bastante, com ou sem auto. Desde que capturado, a prova é bastante. Depois vem a pergunta: onde está a falta de prova se capturamos no teatro operacional? Que prova mais é necessária se este é o inimigo capturado em combate? Mas, do ponto de vista de prova válida, para o juiz o que não existe nos autos não existe no seu mundo. É preciso encontrar conexão clara entre a conduta do agente e o acto praticado. E essa conexão deve constar dos autos. Só assim, teremos prova robusta e convincente. Então, é necessário conciliar a perspectiva militar da civil, encontrar um pacto de meio-termo, sob pena de desmoralização dos militares ou mesmo conduzir a uma situação em que se desiste de capturar e se opte pelo abate indiscriminado, o que é outra vertente mais grave para um Estado. Um Estado não é criminoso. Criminosos são os bandidos. Dito isto, não temos alternativas possíveis. Ou sucumbimos como país; ou lutamos e vencemos; ou nos aliamos ao inimigo. Qual destas três alternativas é a melhor? Lutar, até vencer! Somos uma Pátria em permanente luta. Temos um território e uma cultura para defender. Temos uma subsistência como um povo, para defender. Temos uma bandeira para defender. É por isso que, na vida militar, existe um momento sagrado de juramento à bandeira. O juramento à bandeira significa ou a Pátria ou a morte, em defesa dela. O nosso futuro comum está condicionado à luta pelo desenvolvimento e ao retorno à economia de guerra. Temos que lutar, até vencer! Essa é, infelizmente, a nossa sina!


[1] A violação quando praticada pelas forças do Estado, facilmente é investigada e clarificada. Em caso de responsabilidade, há punições, pois trata-se de uma organização formal do Estado, diversa da dos bandidos.

[2] Ele disse: i Nhoca! Os outros responderam: txucumeta!

[3] A África do Sul do Apartheid e a Rodésia do Sul assumiram, entretanto, um papel importante no treinamento dos homens armados da Renamo.

[4] Isso me faz recordar que, quando comecei a trabalhar, como professor primário, levantava o rancho na loja do Senhor Ricardo e da cooperativa a crédito e pagava no final do mês.

[5] Que reforça as Resoluções nº 232 de 16 de Dez. de 1966; e nº 216 de 12 de Nov. de 1965.

[6] Um proeminente General das FADM que evito mencioná-lo, como sempre, mas, fica claro que demonstro que a ideia não é minha por uma questão de honestidade intelectual, para não parecerem minhas ideias dos outros, é conhecido pelo seu discurso segundo o qual, se a nádega dói o joelho não entra de férias. Eu acrescento que quando a perna dói o estômago não entra de férias. Nem quando o pescoço dói o coração não entra de férias. Assim, sucessivamente, em relação aos vários órgãos do mesmo corpo.

[7] DIOGO, Luísa Dias, A sopa da madrugada, das reformas à transformação económica e social em Moçambique: 1994-2009, Plural Editores, Moçambique, Porto Editora, Portugal, 2013, p. 164.

[8] Ibidem, p. 167.

[9] Exclui-se, desde já, a criação dos tribunais militares, enquanto não for declarado o estado de guerra, por força do artigo 223 da Constituição da República de Moçambique.

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