Eduardo Mondlane: a inspiração![1]

O dia 20 de Junho de 2020 marca o centenário de Eduardo Chivambo Mondlane um dos mais emblemáticos heróis de Moçambique.

Não tive o privilégio de o conhecer. Mas, conheço-o pela literatura disponível. Conheço-o pelas gravações áudio e vídeo disponíveis. E conheço-o, igualmente, pelas homenagens públicas que todos os Presidentes do nosso País lhe têm conferido.[2] Estou a falar do saudoso Samora Machel, que foi quem edificou a Praça dos Heróis e no seu tempo assegurou que o dia do seu assassinato fosse consagrado Dia dos Heróis Moçambicanos. Estou a falar dos que foram sucedendo a Samora Machel, nomeadamente, Joaquim Chissano, Armando Guebuza e agora Filipe Nyusi. Todos estes falam com muito carinho sobre Eduardo Mondlane. Os guerrilheiros ou combatentes da Luta de Libertação Nacional, também falam, com muito carinho de Eduardo Mondlane. E todos nós, como moçambicanos, temos o orgulho de falar com muito carinho desse embondeiro – Eduardo Chivambo Mondlane.

Trata-se mesmo de um embondeiro. A um embondeiro cada um o evoca tal qual o vê, pois, na verdade, pela sua estatura, ninguém vê ou tem a percepção do embondeiro na íntegra. Dependendo, pois, da posição em que se encontrar pode cada um facilmente retratar o que consegue ver ou perceber. Mas, já não pode ver o que está do outro lado, nem fora do limite do respectivo horizonte visual lateral, e, muito menos no seu interior, na raiz e nos ramos. E, nisto de reportar, cada um acrescenta ou diminui pormenores, dependendo do seu ângulo de leitura. É assim, também, nas escrituras bíblicas ou corânicas, das quais, do mesmo texto cada um tira a ilação que lhe convier.

Mas, felizmente, todos os que reportam Eduardo Mondlane, de forma consensual fazem-no sem variações, pois todas as leituras confluem no mesmo sentido. O que é, naturalmente, corroborado pelos factos e documentos históricos que estão disponíveis, em formato físico e digital.

Da forma como nasceu e cresceu, Eduardo Mondlane tinha tudo para não ter dado certo. Tinha tudo para ter sido um comum pastor de gado, como chegou a ser tal como todos os meninos do seu tempo o foram, pastando o gado, tomando banho em charcos, e envolvendo-se em rixas com os outros pastores, tirando o leite directamente do jorro da teta da vaca para a boca; tinha tudo para ter sido um camponês de enxada de cabo curto, bem ou mal sucedido, dependendo da variação das chuvas; tinha tudo para ter estudado apenas até à 4ª classe e parar por aí, como aconteceu com muitos dos seus contemporâneos; tinha tudo para ter ficado desesperado e ter ficado na sua remota povoação de Nwadjahane, a levar uma vida sem rumo, sem eira nem beira, tal como aos demais.

No entanto, ele lutou contra tudo e todos, saltando de país em país, com a colaboração cúmplice e responsável da Missão Suíça (Igreja Presbiteriana), que terá visto nele essa águia, até, finalmente, ter conseguido formação superior no País mais desenvolvido do mundo. Tinha tudo para ter ficado por lá a usufruir do produto de todo um esforço académico que desembocou na sua graduação. Tinha tudo para se ter mantido, comodamente, nas suas funções nas Nações Unidas. Tinha tudo para ter continuado a leccionar na Universidade de Syracuse em Nova Iorque. Tinha tudo para ter aceite um cargo, quase que à sua escolha, no sistema de governo colonial português e, calma e comodamente, se ter instalado na poltrona do poder e, daí, assistir ao drama dos outros concidadãos, como se nada lhe doesse no coração ou como se isso nada tivesse a ver com ele.

Não foi essa a opção de Eduardo Mondlane. Preferiu juntar-se aos seus concidadãos para a busca da liberdade. Ele sabia que tal lhe iria custar muito sacrifício. Sabia que teria privações, pois, por tal deixaria de ter as condições que vinha tendo como funcionário sénior das Nações Unidas e como Professor universitário, deixando ficar para trás o confortável padrão de vida próprio do de um País desenvolvido. Sabia que não estaria a viver com a mesma naturalidade com a sua entrega a uma empreitada de que nem horizonte de termo se vislumbrava, face ao poderio da máquina colonial instalada, que teimava em perpetuar-se à força. Sabia que se privaria do conforto da família que constituíra, devido à dura agenda de uma luta armada. Mas, mesmo assim, preferiu abraçar a causa da liberdade. Essa causa da liberdade que lhe custou a vida. Essa causa pela qual lutou e sonhou. A causa de que não soube nem viu o resultado. Mas, a sua persistência nessa luta, resultou na libertação de Moçambique. A sua luta não foi e nem terá sido em vão! Sacrificou-se pela causa da Nação. E de forma mobilizadora inspirou e inspira muita gente. Daí a minha opção em considerá-lo: a inspiração!

Hoje, Eduardo Mondlane é lembrado pelos seus contemporâneos. É lembrado por toda a Nação livre e independente, como um dos obreiros-mor da libertação de Moçambique. Mas, é também lembrado no continente africano e no mundo inteiro.

Eduardo Mondlane é, assim, Patrono da maior e mais antiga universidade moçambicana, a que foi, sendo sucessivamente no passado, Estudos Gerais Universitários de Moçambique e Universidade de Lourenço Marques – a Universidade Eduardo Mondlane. Dá nome a várias aldeias, escolas, estradas e avenidas. A maior e mais emblemática avenida da capital do País tem o seu nome.

Na verdade, há que fazer um levantamento exaustivo, para se verificar pelo País fora, como são conservados os estabelecimentos que levam o sagrado nome de Mondlane. Aldeias, estradas e até cooperativas agrícolas que levam o seu nome. Não para se lhes retirar o nome, porque também merecem o legado desse embondeiro. Mas, para que mereçam usar esse nome. Nuns e noutros casos para mobilizar recursos, se os houver, para que estejam à altura do seu Patrono. Uma escola primária com vidros partidos, sem biblioteca, sem campos de jogos, sem água, e que funciona à sombra de uma árvore, se tem o nome deste herói deve merecer muito apoio. Uma cooperativa agrícola que produz uma tonelada de arroz por hectare, merece muito apoio, para que produza acima de sete toneladas por hectare, para merecer o nome do seu Patrono, que era uma pessoa dedicada, estudiosa e intelectual de gabarito. Se ontem, na Cidade de Maputo, estávamos envergonhados com a Av. Julius Nyerere, toda ela esburacada, hoje, estamos dela orgulhosos, pois, olhando para a mesma avenida, dá para dizer que merece o nome que ostenta, visto se apresentar, hoje, como uma pista, linda, com relva, transitável em toda a sua extensão. O mesmo se diga, em relação à Avenida Cardeal Dom Alexandre, que está em condição melhores do que as de um passado recente. Esta, assim, merece o nome do decano do sacerdócio moçambicano.

Mas, é na UEM, que o eco da voz de Eduardo Mondlane de intelectual renomado se manifesta. A UEM tem a responsabilidade moral e intelectual de valorizar a imagem e a dimensão do seu Patrono. E quando digo UEM, falo de estudantes, professores e corpo técnico administrativo. Não há UEM sem pessoas. E, ao longo dos anos, a UEM não tem decepcionado. A UEM tem estado à altura da sua nobre missão. A UEM lidera o processo formativo em Moçambique e tem a obrigação de o fazer, pois é o berço de todas as restantes universidades no País, sejam elas públicas ou privadas. Da UEM nasceu o Instituto Superior Pedagógico, mais tarde transformado em Universidade Pedagógica. Nasceu também a primeira universidade privada, o Instituto Superior Politécnico e Universitário, mais tarde transformado em Universidade A Politécnica. E hoje há um sem número de Universidades, Públicas e Privadas, com destaque para as Universidades Joaquim Chissano, Lúrio e Zambeze.

A perfeição do ensino e extensão da UEM, a organização administrativa, a gestão do registo académico, o funcionamento dos conselhos científicos e pedagógicos e do Conselho Universitário da UEM, são e servem de referência e lanterna para as restantes universidades para nela se inspirarem, seguindo-lhe o modelo ou, mesmo, para melhorarem, a partir daquele.

O Magnífico Reitor, Prof. Doutor Orlando Quilambo, tem se esforçado e exigido a potenciação da UEM em universidade de investigação, caminho que devemos seguir todos, nós estudantes e docentes, e, consequentemente, toda a comunidade académica nacional. Há que investigar e sistematizar os resultados e publicá-los. Os poucos Doutores que temos devem escrever e assumir a dianteira, pois a comunidade académica moçambicana quer ter referências dos seus formados. A sociedade sustentou, directa ou indirectamente, os seus estudos e agora espera e cobra deles os resultados. A corroborar com o Reitor da UEM, Orlando Quilambo, também Lourenço do Rosário, Chanceller da Universidade Politécnica, e Jorge Ferrão, Reitor da Universidade Pedagógica, têm insistido na investigação, escrita e publicação.[3] Mas, hoje estou a falar da UEM, a propósito do centenário do seu Patrono. Não estou a falar das outras universidades. Os poucos Doutores que temos e com o número a crescer à altura do País, na sua maioria têm escrito e com muito brilhantismo. De qualquer modo, temos que sair de maioria que escreve, para a totalidade, um cenário óptimo para dizermos que todos os Doutores estão a investigar, a escrever e a publicar, para que, antes de citarmos os cultores forasteiros das diversas matérias, o façamos em relação aos que têm cordão umbilical nas margens do Índico. Paralelamente, a UEM, como locomotiva e força motriz de todo o ensino superior no País, tem a nobre responsabilidade de infundir nas outras universidades a conciliação entre a quantidade e a qualidade dos graduados, auscultando regularmente o mercado beneficiário, de modo a obter o retorno. 

O Magnífico Reitor da UEM, Prof. Doutor Orlando Quilambo, quando insiste na investigação, tem amparo e inspiração no Patrono, que era investigador no Departamento de Curadoria das Nações Unidas. Obviamente, que a investigação custa muito dinheiro, o tal que o nosso Estado o não tem. Nem a UEM o tem, com recursos próprios consignados que gere. Mas, a investigação é investimento. Se os nossos pilotos, no passado, reparavam aviões no ar em pleno cruzeiro, não vejo como não se podem mover moinhos e ventos na busca de soluções de investigação em terra, tendo em conta que os resultados da investigação podem ser reprodutivos e comercializáveis. Falo da investigação dos achados arqueológicos ribeirinhos e marinhos do Oceano Índico, que podem ser usados, publicitados e rentabilizados; investigação de plantas autóctones com aplicações múltiplas, desde aplicações medicinais, afrodisíacas, inclusive, e associação para a produção de fármacos.

A UEM, em parceria com a UP, poderia ter a responsabilidade de aconselhar os órgãos do Estado, sobre o tempo de presença e permanência dos jovens estudantes nas escolas, quer para o estudo dirigido pelo professor, quer para pesquisa e leitura em bibliotecas, usando as bibliotecas virtuais e físicas, onde existam, de modo a incrementar um maior rendimento e rentabilidade. 

Eduardo Mondlane era estudioso. Por isso, nós os estudantes e docentes temos que nos inspirar nele e sermos estudiosos. Temos que ser estudantes comprometidos com o saber como o foi o Patrono da UEM. Os estudantes a tempo inteiro têm o dever de encarar o estudo como sua profissão. Nós, os estudantes do pós laboral,[4] não podemos encarar o estudo como um hobby do qual nos ocupemos nos tempos livres, nos intervalos, entre uma caneca de cerveja e uma taça de vinho, porque o estudo é coisa muito séria para não merecer uma prioridade acima da média.

Mas, se a obrigação do Estado é garantir a escolaridade obrigatória, até à 9ª classe, há que reconhecer que, feito esse nível, não se pode esperar que toda a gente prossiga até à 12ª classe, para depois ingressar para as universidades, pois, há outros caminhos a seguir, sob pena de o País se enriquecer apenas com massa pensante carente de fazedores, um País de Engenheiros e Doutores, sem operários, o que seria igual a um exército de generais sem praças, toda a gente a fingir que comanda e toda a gente a fingir que cumpre as ordens de comando.

A UEM, inspirada no seu Patrono, assume e pode reforçar esse papel de tomar a dianteira de tornar a universidade um lugar da liberdade intelectual e de pensamento, onde se forma e se molda o Homem de hoje e do amanhã, como diria Samora: fazer da escola uma base para o povo tomar o poder ou como Mondlane teria sido aconselhado pela mãe a ir estudar para conhecer e dominar o feitiço dos brancos. Escrevemos, em algum momento, que não se defende um ensino superior incapaz de desenvolver a liberdade de pensamento, um ensino subserviente e servil, que não questiona e não procura respostas para as indagações porque não as faz, e que o ensino superior deve apresentar sempre algo de novo, sob pena de não ensinar nada ou ensinar o que toda a gente sabe, e, em consequência, essa mesma gente preferir a sua ignorância.[5]

Na verdade, a UEM tem colocado, com muita responsabilidade, desafios e metas aos seus estudantes e docentes, para que do seu resultado a sociedade tire proveito. E, nesse aspecto, temos que reconhecer o empenho dos sucessivos reitores da UEM, Fernando Ganhão (já falecido), Rui Baltazar, Narciso Matos, Brazão Mazula, Filipe Couto e o actual timoneiro, Orlando Quilambo, os quais, cada um à sua maneira, com característica e estilo próprios, deram e dão a sua contribuição a bem da maior e mais antiga casa do saber. 

Mau grado, a falta de recursos financeiros tem feito com que, ao longo dos anos, decaia uma das imagens de marca da UEM – as Actividades de Julho (AJUS). Os estudantes da UEM iam ao campo para a materialização da ligação da teoria à prática,[6] o que era muito rentável. Contribuía para desmistificar o ensino. Era importante, para que o ensino não fosse tido como elitista. Um ensino no qual o futuro agrónomo aprendia a lidar com o campo, o futuro médico aprendia a lidar com problemas de saúde pública de base, onde o futuro engenheiro aprendia a ver pontes de bambu ou troncos, onde o futuro jurista aprendia a realidade dos casamentos tradicionais, entre outros. Hoje, temos oportunidade de repensar em tudo isso, para que o nosso graduado saiba inserir-se terra-a-terra com as comunidades e com o destino do seu conhecimento, atento a que Moçambique não começa e termina em Maputo.

De qualquer modo, parece razoável que a criação das universidades resultantes das unidades académicas orgânicas locais da UEM, e muito recentemente, da UP nas províncias, não pode ser vista nem tida como privando alunos de uma região de concorrer na outra, tanto no desiderato do espírito da unidade nacional em que tanto se embrenhou o Patrono da UEM – alínea b) do artigo 11 da Constituição da República de Moçambique (CRM) -, como no de liberdade de circulação do conhecimento e de intercâmbio ilimitado do saber. Aliás, poderia ser penoso ter graduados que nunca saíram da sua própria Província, ou que tomem a capital do País como uma miragem, num Estado unitário, uno, indivisível e inalienável.[7]Em algum momento, na Faculdade de Direito, os estudantes se organizavam para a chamada viagem de fim de curso, para fora das fronteiras nacionais, o que era muito bom. Sem ser viagem, mas uma vinda à capital de estudantes das províncias, de forma programada e organizada, permitiria sempre colher muita informação no memento de preparação dos artigos para a defesa do canudo e, mesmo, para conhecer o mundo exterior à Província.

Só com esta perspectiva de abordagem (investigação e extensão, na sua dimensão de ligação teórico-prática e intercâmbio de conhecimento) se poderá materializar o desiderato constitucional segundo o qual: o acesso às instituições públicas do ensino superior deve garantir a igualdade e equidade de oportunidades e a democratização do ensino, tendo em conta as necessidades em quadros qualificados e elevação do nível educativo e científico do país – nº 1 do artigo 114 da CRM.

As faculdades existentes na UEM, todas elas, mas todas mesmo, desde Letras e Ciências Sociais, Economia, Educação, Veterinária, Arquitectura e Planeamento Físco, Engenharias, Agronomia e Engenharia Florestal, só para citar alguns exemplos, demonstram elevada maturidade e organização, para o que devem servir de modelo para as faculdades e escolas de outras universidades. Mas, Eduardo Mondlane era antropólogo e sociólogo. Por isso, a Faculdade de Letras e Ciências Sociais tem a responsabilidade ímpar de servir de locomotiva para a disseminação dos exemplos de valorização permanente da vida e obra de Eduardo Mondlane em toda a instituição e desta, para a sociedade no geral.

Mas, convenhamos, puxando a brasa à minha sardinha, é nas Faculdades de Direito e de Medicina que a UEM preserva a sua nota de distinção, por isso, a busca para o acesso a estes cursos tem sido frenética, ao longo dos anos, com os números de procura a crescerem em proporção geométrica, de ano para ano. O acesso é muito difícil, pois as vagas não são elásticas. São cursos muito exigentes, por isso, as saídas são poucas para abrir vagas. E com razão, são cursos que exigem muito da componente humana. O erro de um médico é fatal para a vida humana. O erro de um jurista tem consequências nefastas para o cidadão.

Dito isto, a UEM é UEM, tal como Eduardo Mondlane é Eduardo Mondlane: a inspiração!


[1] Artigo de celebração do aniversário natalício do Patrono da Universidade Eduardo Mondlane.

[2] Obviamente, estou falar dos Presidentes no contexto da liderança dos respectivos Governos, os quais também merecem reconhecimento.

[3] O actual Reitor da Universidade Politécnica, Prof. Doutor Narciso Matos tem estado a continuar com esse nível de exigência. Reconheço, igualmente, o esforço de outros Reitores, entretanto, os aqui referidos são meramente a título exemplificativo.

[4] Também sou estudante do período pós laboral. Por isso, a referência a nós (estudantes, eu incluído), não é ao acaso.

[5] PAULINO, Augusto Raúl (2016), O Rugido da Toga, Lições do Juiz Paulino I, Alcance Editores, Maputo, p. 146.

[6] Os pedagogos referem com frequência que a prática é o único critério da verdade!

[7] Cf. nº 1 do artigo 6 e nº 1 do artigo 8 da Constituição da República de Moçambique.

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